No passado dia 23 de novembro, o Papa Leão XIV publicou a Carta Apostólica In Unitate Fidei, com a qual celebra o 1700.º aniversário do Concílio de Niceia. Este Concílio, a quase mil e setecentos anos de distância, não é um exercício de arqueologia teológica reservado a especialistas. O que aí se decidiu toca o centro das perguntas humanas de hoje: quem é Jesus, que rosto tem Deus, que sentido é possível para a existência num mundo acelerado, fragmentado e desconfiado. O Credo niceno continua a ser um lugar onde a Igreja aprende a respirar num tempo em que muitos vivem em apneia espiritual.
O essencial da decisão de Niceia pode ser dito com simplicidade: em Jesus de Nazaré não se encontra apenas um grande mestre ou um profeta inspirado, mas o próprio Deus que Se envolve, sem reservas, com a condição humana. A palavra grega que marcou o concílio, homoousios (“da mesma substância” do Pai), não complicou a fé; tornou explícito que Deus não ficou à distância nem delegou a salvação a um intermediário. Em Cristo, é o próprio Deus que assume a carne, o limite, a dor e a morte.
Por isso, a fé da Igreja não é, antes de mais, uma teoria sobre o divino, mas a confiança de que o fundamento último da realidade não é um mecanismo anónimo nem um poder caprichoso. Se Cristo é verdadeiramente Deus, a fragilidade humana deixa de ser lugar de descarte e torna-se lugar de encontro. A fé nicena afirma que a história não está condenada ao ciclo eterno da força e do medo, porque Deus entrou nesse ciclo por dentro e não desistiu da humanidade.
Neste horizonte, caem muitas caricaturas correntes: a fé reduzida a moral de proibições, a espiritualidade confinada ao privado, a religião usada como fronteira identitária. O Credo é, antes, uma narrativa condensada de relação: diz de onde vem a vida, quem a acompanha e para onde pode ser conduzida. Quando a Igreja proclama “Deus de Deus, Luz da Luz”, não recita uma senha de clube fechado, mas afirma que nenhuma noite humana é absoluta.
Num cristianismo dividido, Niceia é ainda um milagre discreto de convergência: Igrejas e comunidades muito diversas continuam a reconhecer-se no mesmo Credo. Antes de qualquer divergência disciplinar ou estrutural, permanece uma confissão comum: Jesus Cristo, Filho de Deus, verdadeiro Deus e verdadeiro homem. Este património partilhado não apaga as feridas, mas impede que o outro seja apenas adversário, lembrando que há uma mesma fonte onde muitos bebem.
Daqui nasce também uma visão mais arejada da própria Igreja. A fé nicena propõe um modelo de unidade inspirado na Santíssima Trindade: uma comunhão em que a unidade não sufoca a diferença e a diferença não rompe a unidade. A Igreja é chamada a ser menos fortaleza e mais casa com janelas abertas; menos sistema de controlo e mais espaço de hospitalidade, onde crentes de várias tradições e buscadores sem rótulo possam encontrar-se e escutar-se.
O aniversário de Niceia pode, assim, tornar-se ocasião para purificar a fé de incrustações ideológicas e de medos defensivos. Em vez de nostalgia de cristandade ou de guerras culturais, o convite é a recentrar-se em Cristo como boa notícia para a dignidade concreta de cada pessoa. Se Deus Se fez solidário até ao fim, a ortodoxia deixa de ser arma e converte-se em responsabilidade de cuidar da imagem de Deus que cada ser humano carrega.
Num mundo saturado de promessas vazias, a fé nicena não oferece soluções mágicas, mas uma confiança: no mais denso da história, há uma comunhão que precede, sustém e reconcilia. A partir dela, a Igreja é chamada a falar menos de si e mais do Evangelho, tornando-se sinal humilde de uma unidade possível numa humanidade em fragmentação.