twitter

Forjado entre ferros e feijoada

 



 

Caro amigo,

Hoje, ao dedicar-te esta crónica, com as lágrimas por secar, com tantos anos de boas memórias, não consigo deixar de pensar no teu legado. Assim como no fogo, se forja o aço, foste forjado entre ferros retorcidos com que, tantas vezes, montamos em palcos improvisados, as peças de teatro que, a partir da rua D. Afonso Henriques, primeiro e mais tarde, da Travessa do Ferraz, calcorrearam quilómetros para chegar a aldeias e lugares onde improvisávamos a arte do impossível. Quem assim cresce, com tal vontade e firmeza, amando uma arte como tu, sobrevive às intempéries com todo o desassossego do quotidiano a aconselhar outro rumo. Mas foi assim, ao frio, debaixo de calor, com mais ou menos apetite, clamando por uma feijoada que haveria de chegar pela madrugada fora, na rua do Carvalhal, que caminhamos unidos por uma amizade que se forjou para lá dos palcos, dos écrans da televisão e do cinema. Parece que foi hoje, mas tudo o que a memória nos obriga hoje a comungar com todos tem quatro décadas de destino em que te tornaste uma referência da força e resiliência, superando as adversidades em que as oportunidades acabaram por abrir as luzes da ribalta, sem que tu mudasses uma vírgula no teu modo de ser e de estar com os amigos. Nunca te ouvi um lamento, pelo contrário, sobre a carga ferrosa que Lisboa ditava, porque as tuas origens nunca foram apagadas e fizeste delas o teu argumento principal para venceres na “aldeia branca” contra as marés dos desconfiados e ciumentos da praça de Espanha onde vingaste. O percurso foi de vitória em vitória, passo a passo, até te tornares na referência maior entre todos os que, entre nós, subiram aos palcos, pela primeira vez, na década de 70, do século XX. A mestria dessa arte tão nobre pode, sem falsos elogios, olhar para ti, como um exemplo de libertação criativa e inspiradora. Passaram dezenas de anos até ao dia em que regressei aos palcos, em parte devido ao teu convite para o casamento do “teu filho”, em pleno agosto de 2021. Só percebi à segunda que o casamento era parte da ficção que estavas a filmar em Braga “Vento Norte” e que bom que foi voltar a contracenar contigo. Reencontramo-nos no tempo, como se este estivesse parado à nossa espera e com naturalidade e a ansiedade, esquecendo a praia, abracei a oportunidade para estarmos de novo juntos com o José Miguel Braga, o Carlos Feio e o Paulo Lobato, no palco de onde se podem exaltar todas as virtudes e todos os pecados sem correr o risco de nos viciarmos em nenhum. A tua história de vida, fora dos palcos, merece que se recorde aqui, caro Meno (Almeno Gonçalves) que foste para lá da evidência dos palcos, um resistente e tiveste ao lado da história dos que acreditavam na Democracia e na Liberdade e que ainda novo, como estudante no liceu Sá de Miranda, em Braga, fizeste parte da geração que sentia o mundo a fugir, que se recusava a pegar em armas e que lutou, sobretudo, contra a guerra colonial, mas também contra a repressão de um Estado decrépito que coartava a vossa Liberdade. Homens assim, forjados a ferro e fogo no palco e fora dele, terão sempre lugar na Memória e na nossa história coletiva. Que Braga não te esqueça e, quem saiba, um dia, te possa prestar a devida homenagem, apontando-te às novas gerações como o exemplo de que é possível forjar a vida com dignidade e enganar o palco com um sorriso aberto para o mundo.

Paulo Sousa

Paulo Sousa

30 novembro 2025