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Uma Casa que cura

A hospitalidade é mais do que boa educação: é um modo de organizar a vida comum para que cada pessoa possa existir. Numa comunidade terapêutica ao serviço da saúde mental, esse modo torna-se princípio estruturante do cuidado. Aqui, acolher não é integrar o outro nos nossos “esquemas mentais”; é criar espaço para que reapareça a sua própria voz, mesmo quando frágil, e se reconstruam vínculos capazes de sustentar a esperança.

O fundamento é antropológico: somos seres de abertura e de dependência mútua. A falta de saúde psíquica não suprime esta condição; torna-a visível e, por vezes, dolorosa. A comunidade hospitaleira nasce precisamente para proporcionar estima e confiança, permitindo que o sujeito recupere pertença e sentido. A hospitalidade, assim, não é floreado ético; é ambiente ontológico onde a pessoa volta a ser reconhecida antes de qualquer diagnóstico.

Como princípio terapêutico, a hospitalidade traduz-se em práticas concretas: escuta sem julgamento; respeito pelos ritmos; regras claras e estáveis sem rigidez punitiva; linguagem que nomeia sem reduzir à mera patologia; participação gradual nas decisões. O centro é a presença, não a produtividade. Sabemos que quem sofre não pede técnicas sofisticadas, mas lugares onde possa ser amado; Henri Nouwen (1932-1996) descreveu o cuidador como “o curador ferido”: só quem reconhece a própria vulnerabilidade acompanha sem dominar. Por isso, a hospitalidade cura ao restituir confiança e ao reabrir horizontes de relação.

A dimensão teologal aprofunda o que a clínica experimenta. A Escritura apresenta um Deus que se hospeda: «era estrangeiro e acolhestes-me» (Mt. 25-35). Por seu lado, Christoph Theobald (1946-) lê o “estilo de Deus” como criação de espaço para a liberdade humana: Deus convida sem violentar, aproxima-se com mansidão, ampara com gratuidade. Uma instituição inspirada pelo Evangelho procura reproduzir este estilo em dispositivos discretos de proximidade, cuidado e reconhecimento espiritual, como epifania de dignidade para todos.

Sendo realidade comunitária, a hospitalidade exige coerência institucional. Não basta acolher bem as pessoas assistidas; é preciso que a organização acolha também os seus profissionais: formação contínua, descanso, supervisão e espaços de diálogo. O burnout é, muitas vezes, sintoma de falta de hospitalidade interna. Estruturas transparentes, decisões partilhadas e rituais simples (saudações, refeições, tempos de silêncio) comunicam um ethos que protege e educa afetos.

A linguagem é lugar decisivo. Em saúde mental, as palavras curam ou ferem: “agitado”, “difícil”, “crónico” podem fixar identidades! A hospitalidade linguística chama pelo nome, legitima narrativas e evita rótulos. Também a dimensão simbólica — uma oração breve, um gesto litúrgico, um canto — pode oferecer gramáticas de sentido que integram a dor sem a silenciar, devolvendo ao corpo a sua honra.

Para não deslizar para paternalismo, a hospitalidade precisa de reciprocidade. A pessoa assistida não é objeto de intervenção, mas companheira de caminho. A comunidade aprende com os seus dons (sensibilidade, humor, lucidez ferida) uma nova gramática da paciência. Como sugeria Emmanuel Lévinas (1906-1995), o rosto do outro convoca responsabilidade: quem cuida e quem é cuidado tornam-se companheiros, não por simetria funcional, mas por comunhão de vulnerabilidade.

A credibilidade do cuidado mede-se pelos efeitos de humanização que produz. O que fazemos cria lugar, reconcilia, abre futuro? Uma liturgia que não se traduz em acolhimento quotidiano desmente o seu sentido; uma gestão eficiente mas opaca corrói a confiança; uma técnica irrepreensível sem presença falha no essencial. O estilo hospitaleiro é, simultaneamente, critério clínico, espiritual e institucional.

Em síntese: hospitalidade é Casa que cura. Uma comunidade terapêutica hospitaleira organiza tempos, espaços, palavras e decisões para que cada pessoa, antes de ser um “caso” ou um “número”, seja um hóspede esperado. Aí, a terapêutica encontra a vida teologal: no gesto concreto que abre lugar, Deus faz-se reconhecível e o sofrimento encontra abrigo. A missão é perseverar nesta liturgia quotidiana do acolhimento — discreta, estável, gratuita —, onde a esperança se torna habitável e a vida, de novo, possível.

Luís M. Figueiredo Rodrigues

Luís M. Figueiredo Rodrigues

22 novembro 2025