Há algo de profundamente humano no modo como uma criança olha o mundo: um olhar que não se contenta com as respostas prontas, que pergunta o que os adultos já deixaram de perguntar. Talvez seja esse o dom mais precioso das infâncias — sim, no plural, porque não há uma só forma de viver a infância. Há infâncias que correm nas ruas e outras que crescem em apartamentos; infâncias que brincam na terra e infâncias que se (re)inventam nos ecrãs; infâncias que são acolhidas e infâncias que resistem. Falar de infância(s) é, portanto, falar da diversidade de modos de ser, existir e estar no mundo. E, nesse mesmo gesto, falar de direitos é recordar que a dignidade das crianças não nasce da boa vontade dos adultos, mas da sua própria condição de sujeitos de vida. Reconhecer a criança enquanto autora de sentido, alguém que pensa, cria e transforma, é um acto político e ético. É também uma convocação: reaprendermos a escutar, a partilhar o tempo e a abrir espaço ao inédito.
Mas, para escutar verdadeiramente as crianças, é preciso desaprender a pressa. Vivemos num tempo em que tudo parece correr — as notícias, as tarefas, as mensagens, o próprio tempo. E, nesse turbilhão, o que é pequeno, o que é lento, o que é silencioso, acaba por ser esquecido. As crianças, com a sua capacidade de se demorarem nas coisas, de repetirem um gesto apenas pelo prazer de o fazer, de se encantarem com o que para nós já se tornou banal, ensinam-nos outra imagem do tempo. Um tempo que não mede a produtividade, mas a presença. Talvez o primeiro direito das infâncias seja justamente esse: o direito a um tempo próprio, um tempo que não lhes seja roubado pela pressa dos adultos ou pelo ritmo impaciente da sociedade.
No dia 20 de novembro, quando assinalamos o Dia Universal dos Direitos das Crianças, recordamos que estes direitos não emergem de uma abstração jurídica, mas de uma urgência moral. A Convenção sobre os Direitos da Criança, de 1989, não foi apenas um marco legislativo consensualizado entre Estados; foi um compromisso ético assumido com a humanidade. Um compromisso que afirma que cada criança — independentemente da sua origem, língua, território ou história — é portadora de uma dignidade que não admite hierarquias. Os direitos da criança são, antes de tudo, um espelho que nos devolve a imagem da sociedade que estamos a construir.
Contudo, uma data comemorativa não transforma, por si só, vidas concretas. O que transforma é a prática quotidiana: a escuta que se oferece, o espaço que se abre, o cuidado que se dispensa. Garantir os direitos das crianças implica olhar a cidade com outros olhos — interrogar onde cabem o brincar, a imaginação e o espanto; questionar como protegemos as infâncias das violências visíveis e das invisíveis; ponderar que mundos lhes permitimos criar. Defender os direitos das crianças é, também, aceitar que elas nos interrogam, nos desinstalam e nos obrigam a repensar a forma como organizamos o tempo, o espaço e as relações.
Neste dia, talvez devamos recordar o mais simples e o mais exigente dos princípios: as crianças não são o futuro — são o presente vivo, pulsante e crítico. E é no presente que os seus direitos devem ser garantidos. Porque, quando a infância é respeitada, toda a sociedade se reencontra com a sua própria humanidade.