O debate sobre a vida coletiva parece ter desertado o espaço público tradicional para se disputar num estádio digital dominado por emoções à flor da pele, identidades cristalizadas, vozes efervescentes, acusações intempestivas e silêncios cúmplices. A racionalidade, que deveria pautar a escolha democrática, foi perdendo terreno para emoções de bancada, onde a análise de programas e o confronto de ideias deram lugar a fidelidades tribalizadas. Nunca houve uma idade de ouro da democracia em que partidos e eleitores agissem com irrepreensível elevação; contudo, a digitalização intensificou a lógica da conflitualidade, deu escala à desinformação e expôs de forma brutal crispações e fragilidades que antes se diluíam na esfera pública. Esta “futebolização” atravessa todas as gerações e classes sociais.
O conceito de “futebolização” não remete para o desporto enquanto celebração partilhada, mas para a sua pior versão: a dinâmica de claque, o tribalismo cego, o fervor que dispensa reflexão e faz do adversário um inimigo. Importada para a política, essa lógica reduz a cidadania a um jogo de rivalidades, em que importa mais vencer do que agir em prol do bem comum. Enquanto espaço de cultura, convivência e expressão afetiva, o futebol é muito mais do que isto; todavia, a política parece ter captado apenas o lado mais crispado. A literatura recente mostra que estratégias assentes em indignação e raiva aumentam de forma significativa o envolvimento com mensagens políticas e podem influenciar o comportamento eleitoral (Bil-Jaruzelska & Monzer, 2022). Nas redes sociais, as publicações que exploram medo, ressentimento ou orgulho geram muito mais reações, comentários e partilhas do que comunicações neutras ou informativas, favorecendo a engrenagem algorítmica do conflito.
Não surpreende, por isso, que as formações populistas invistam de forma sistemática neste tipo de discurso. No espaço ibérico, uma análise comparativa das estratégias digitais do Chega e do Vox no X, Instagram e TikTok evidencia o uso recorrente de retórica de confronto com as elites, a dramatização da insegurança e a hostilidade dirigida a minorias e imigrantes, frequentemente associadas a promessas de punição exemplar (Domínguez-García et al., 2025). No que a Portugal diz respeito, está perfeitamente identificada na comunicação online de André Ventura uma forte predominância de mensagens negativas, moralmente polarizadoras, centradas na construção de “inimigos internos” – do “sistema corrupto” às comunidades racializadas – em detrimento da explicitação de propostas de política pública (Prior, 2024). “Por dentro do Chega”, o recente trabalho de investigação do jornalista Miguel Carvalho, revela com precisão o funcionamento interno e os circuitos que dão consistência a esta estratégia discursiva.
Um estudo realizado nas Legislativas de 2024, junto de 130 jovens eleitores portugueses entre os 18 e os 21 anos, mostra que atitudes populistas aumentam em cerca de 27 % a probabilidade de polarização afetiva. O apoio a narrativas da direita radical eleva ainda esse valor entre utilizadores do X, plataforma em que a arquitetura algorítmica amplifica o embate ideológico (Ferreira & Ferreira, 2025). Por outro lado, investigações internacionais (Estellés e Castellví, 2020; Savadori, Espa & Dickson, 2020) têm demonstrado que níveis elevados de escolaridade não imunizam contra tais apelos emocionais, sobretudo quando apresentados como defesa da identidade ou reação às elites. Em contextos de elevada saturação informativa, mesmo cidadãos com formação académica avançada podem aderir a enquadramentos simplificados que reforçam a retórica de pertença afetiva em detrimento da deliberação racional.
O mais inquietante é que esta gramática já não se circunscreve à extrema-direita nem ao tumulto das redes. Doravante, partidos no governo apropriam-se dos mesmos mecanismos para disputar segmentos radicalizados do eleitorado, contribuindo para a normalização de uma linguagem que eles próprios condenavam. E, como evidenciaram as últimas autárquicas, a lógica de confronto alastrou-se à política local e encontra cúmplices numa esfera mediática sedenta de audiências, onde a amplificação permanente do conflito tende a sobrepor-se às exigências de rigor e responsabilidade democrática.