Abu Dhabi está a executar um dos mais ambiciosos programas de transformação digital do mundo: a Abu Dhabi Government Digital Strategy 2025-2027, com o objetivo de criar um governo “AI first”, onde os processos funcionam na versão mais eficiente e inteligente possível. Exemplos concretos já foram apresentados como o registo de uma viatura feito automaticamente apenas com o cartão de cidadão, sem formulários, sem balcões, sem intervenção do cidadão. O compromisso é claro: digitalizar com IA 100% dos serviços e processos governamentais até 2027.
Há desde já alguns pontos que merecem destaque, e muitos outros que valerá a pena acompanhar ao longo da implementação deste programa. Comecemos pelo primeiro: o compromisso.
Compromisso
É verdade que nestas geografias os orçamentos são mais fáceis, mas ainda assim 13 mil milhões de AED representam uma aposta séria e consequente. Muitas organizações falham precisamente aqui: definem objetivos ambiciosos, mas não alinham recursos nem capacidade para os executar. Abu Dhabi está a fazê-lo.
Ambição
Tal como já defendi antes: num mundo com tecnologia tão madura, quem for mais ambicioso vai mais longe. Este plano é de uma ambição rara mas, na minha opinião, possível. Mesmo que não cumpram a meta a 100%, o resultado final ficará, certamente, vários níveis acima da realidade atual.
Estratégia e planeamento
O programa segue uma lógica clara: cloud, sim mas sob soberania nacional, com o mega data center “Stargate AI Campus”. Paralelamente, surgem plataformas como o K2 (alternativa ao ChatGPT, mais eficiente e gratuita), entre outros sinais de pragmatismo e execução consistente.
E o fator humano?
Se caminhamos para um governo 100% automatizado com IA, o que acontece aos mais de 300.000 trabalhadores públicos do setor administrativo? O que fazemos com eles?
Se apenas conseguíssemos manter os mesmos custos atuais, sem despedir ninguém, mas com serviços públicos a funcionar em tempo real, sem falhas e com cidadãos satisfeitos, já seria extraordinário. Mas se, além disso, requalificássemos essas pessoas para novas funções de valor, melhor ainda e estaríamos a elevar a qualidade dos serviços ou a criar novos.
O desafio é: conseguiremos realmente requalificar e reposicionar dezenas de milhares de pessoas?
A resposta pode passar por uma ideia simples: usar esse capital humano para reforçar a camada de apoio, empatia e proximidade ao cidadão. Em qualquer transformação digital séria, a “gestão da mudança” é essencial para preparar as pessoas, apoiar, explicar, ajustar. Aqui pode não ser diferente, apenas à escala nacional.
Com o envelhecimento da população, maior esperança de vida e níveis de literacia digital ainda desiguais, a automação não elimina a necessidade de apoio humano — antes a reforça.
A proposta: O Gestor do Cidadão
Imagine a criação de um novo papel no Estado: o Gestor do Cidadão, como existe o gestor de conta nas empresas. Uma pessoa qualificada que acompanha o cidadão ao longo da vida, explica serviços, resolve bloqueios, orienta nos momentos críticos, mantendo viva a ligação humana num serviço público totalmente automatizado. Não reduziria custos? Talvez não. Mas manter o mesmo custo e alcançar eficiência total, rapidez real e empatia humana seria uma revolução de paradigma e muito bem-vinda. Seria a tal “cereja em cima do bolo”.
Chamo a este conceito “Social by Design”: desenhar a tecnologia com a sociedade dentro, e não à margem — porque quando pensamos antecipadamente no que queremos construir, tudo se torna possível.
No caso de Abu Dhabi, parte desta questão está mencionada, nomeadamente com programas de formação e requalificação em IA mas não há ainda indicadores sólidos de como será feita a transição humana, apesar de se estimar que 43% dos empregos administrativos possam ser substituídos pela automação.