Num tempo em que ressurgem slogans que invocam a nostalgia de Salazar, é justo lembrar duas figuras que, partindo da mesma vila transmontana e de origens humildes, construíram a sua vida contra a ignorância e o medo: António Borges Coelho e José Luís Borges Coelho. Ambos nasceram em Murça, ambos viveram a pobreza digna das famílias de lavradores e pequenos funcionários, e ambos fizeram da cultura o seu caminho de libertação.
Antes do 25 de Abril, Portugal era um país de barreiras sociais pouco transponíveis. Na vila, ainda se comentava com escândalo o facto de o jovem António, “filho de gente pobre”, ter entrado na universidade – um gesto quase subversivo num tempo em que os “doutores” pareciam ser monopólio dos poderosos e dos seus submissos. A mobilidade social era suspeita; a inteligência, perigosa. Mas foi precisamente essa desobediência silenciosa – estudar, pensar, escrever – que marcaria o resto da sua vida.
António Borges Coelho, nascido em 1928, foi historiador, professor catedrático e resistente político. Preso pela PIDE, viria a tornar-se um dos nomes maiores da historiografia portuguesa. As suas obras – Raízes da Expansão Portuguesa, A Revolução de 1383, Portugal na Espanha Árabe e a vasta História de Portugal – reinventaram a leitura do passado, devolvendo protagonismo ao povo, aos esquecidos e aos vencidos. “Dar voz aos que em baixo fazem andar a História” foi o seu lema e o seu método. Morreu em outubro de 2025, aos 97 anos, depois de uma vida inteira dedicada à liberdade e ao saber.
Doze anos mais novo, o seu irmão José Luís seguiu outro caminho, mas com a mesma vocação transformadora. Nascido em 1940, tornou-se maestro, pedagogo e humanista. Fundou em 1966 o Coral de Letras da Universidade do Porto, que dirigiu durante quase seis décadas, e foi professor e diretor da Escola Calouste Gulbenkian de Braga, onde lecionou História da Música, Direção Coral e Técnica Vocal. À frente da escola, trabalhou por uma pedagogia exigente e participativa, acreditando que a educação musical não devia formar apenas intérpretes, mas cidadãos conscientes.
Na Gulbenkian de Braga, José Luís Borges Coelho formou músicos, professores e ouvintes. O seu modo de ensinar era firme, mas profundamente humano. Acreditava, como repetia aos alunos, que “a música é um ato de comunidade e liberdade”. Na sua direção, a escola abriu-se ao diálogo entre tradição e modernidade, e ao papel social da arte, num tempo em que Portugal ensaiava, ainda com timidez, os gestos da democracia. Faleceu em agosto de 2025, aos 85 anos – poucos meses antes do irmão.
Fui seu aluno de História da Música na Gulbenkian de Braga, em complementaridade do secundário, no final da década de setenta, inícios de oitenta do século passado. Eu, homem de centro-direita, do PPD/PSD e ele, comunista convicto, mas puro, nunca precisámos de esconder as diferenças: apesar das diferenças de idade e a condição de professor-aluno, respeitámo-nos mutuamente. Era um didata rigoroso, generoso e profundamente humano. No seu modo sereno de ensinar, havia algo de universal – uma lição que ainda hoje guardo como cidadão e amante da música. Politicamente, o tempo veio a dar-me razão. Na verdade, a social-democracia, ainda que imperfeita, supera infinitamente as ditaduras, sejam comunistas, sejam de extrema-direita. Na síntese feliz de Francisco Sá Carneiro, em 1977, “A democracia é, no fundo, o esforço constante e diário, na luta contra a ditadura, da preservação da liberdade, contra qualquer espécie de ditadura, seja ela de esquerda ou de direita”.
Hoje, quando vemos a tentação de pintar de novo nas paredes figuras e mensagens do passado ou a promessa vã de reprimir a liberdade, as vidas dos irmãos de Murça são um antídoto e uma lição. O cartaz simplifica; o ensino complica. O cartaz grita; a escola raciocina. O cartaz promete grandeza; o estudo exige esforço. Não se nega a necessidade de ordem e autoridade, mas só são válidas vividas em liberdade e democracia.
O percurso dos Borges Coelho prova que a liberdade se constrói por dentro: nas aulas, nas bibliotecas, nas salas de ensaio, nos livros escritos à noite, no trabalho de quem acredita que todos têm direito à cultura. Vindos de uma casa modesta, sem privilégios nem proteção, ergueram-se apenas com a força do estudo e da ética. Num país que durante décadas negou o saber a quem vinha de baixo, eles mostraram que o talento não tem classe e que o conhecimento é a mais nobre forma de justiça social.