twitter

Por Entre Linhas e Ideias

Hoje a nossa reflexão vai até Ícaro, essa figura da mitologia grega que quis voar mais alto do que o pai permitira e acreditou que o sol o acolheria sem o castigar. A história parece feita para o nosso tempo e talvez por isso continue a inquietar-me. Ícaro esqueceu-se de que as asas que o sustentavam eram frágeis e feitas de cera e, ao esquecer-se disso, perdeu o equilíbrio que o mantinha humano. Penso muitas vezes que essa imagem resume bem o nosso desejo de ir sempre mais longe e mais alto, sem medir o peso da distância que nos separa de terra firme. Dédalo ofereceu ao filho a liberdade, mas também o aviso que ele não quis escutar. E é nessa desatenção que começa a queda e por isso vos pergunto: Será que o espelho onde nos vemos ainda mostra quem somos?

Ao longo do tempo, fui percebendo que, quando olho o mundo à minha volta, esse impulso de subir é tão humano como o medo de cair. Para o compreender, recorro a dois filósofos que o pensaram de forma distinta. Platão via nesse movimento uma lembrança do divino, como se algo em nós quisesse regressar ao lugar de onde partiu. Já Montaigne, nos Ensaios, lembrava que “o maior privilégio do homem é saber reconhecer-se a si mesmo”. Entre o ideal que nos eleva e a consciência que nos limita talvez esteja o equilíbrio que tantas vezes perdemos. Quando perdemos essa medida, o desejo de crescer facilmente se transforma em vaidade, e é nesse momento que Ícaro se encontra com Narciso e o sonho passa a ser apenas reflexo.

Tenho pensado muitas vezes neste narcisismo que marca o nosso tempo. Vivemos num mundo onde querer ser visto vale quase tanto como ser. Já não nos olhamos num lago, mas em ecrãs, à procura de uma imagem que nos reconheça. Às vezes penso que nos tornámos herdeiros de Narciso, encantados com a imagem e distraídos de tudo o resto. Cada “gosto” é um pequeno espelho onde procuramos reconhecimento, e é fácil confundir atenção com valor. Olho para as redes e vejo tantos Ícaros digitais a subir sem parar, sem perceberem que quanto mais se mostram, mais se perdem de si mesmos.

Essa mesma ilusão aparece também no cinema, onde tantas histórias mostram o preço de querer tocar o céu. No filme O Clube dos Poetas Mortos, que tantas vezes vi com os meus alunos nas aulas de Filosofia, o professor Keating desafia-os a “aproveitar o dia” e a descobrirem a sua própria voz. O filme mostra o poder transformador do ideal, mas também a facilidade com que o entusiasmo se transforma em excesso. Aqueles jovens, encantados com a ideia de liberdade, esquecem que o voo só vale se souber regressar. Tal como Ícaro, aproximam-se do sol sem perceber que o essencial não é subir mais alto, mas olhar a vida com profundidade e compreender a responsabilidade das decisões.

Ao ver aquele filme penso muitas vezes que, depois do voo de Ícaro, vem sempre o peso de Sísifo. Talvez por isso este mito seja um dos meus preferidos. O homem que empurra a pedra montanha acima, sabendo que ela voltará a cair, lembra-me que há uma parte do viver que não é feita de aparência, mas de persistência. Albert Camus escreveu em O Mito de Sísifo que “é preciso imaginar Sísifo feliz”, e entendo essa ideia como uma forma de aceitar o que se repete sem perder o sentido. A felicidade não está no topo, mas na capacidade de continuar, mesmo quando o caminho recomeça todos os dias. Ícaro mostra o impulso que nos eleva, Sísifo o esforço que nos sustenta e Narciso o reflexo que nos distrai e talvez seja entre estes três que aprendemos a reconhecer o que somos.

O filósofo Byung-Chul Han ajuda-me a compreender melhor este mal-estar que nos atravessa, descrevendo a nossa época como uma sociedade do cansaço, onde trabalhamos sem parar e esquecemos o sentido da pausa. A ambição, em vez de nos erguer, começou a cansar, e talvez a lucidez seja aprender a parar e não cair na armadilha de Narciso, que nos faz confundir o reflexo com o essencial.

Caros leitores, talvez muitos de vós, tal como eu, se reconheçam nestas figuras. Há dias em que nos sentimos Ícaro, cheios de ideias e vontade de subir, outros em que somos Sísifo, a empurrar tarefas e planos que parecem nunca dar em anda. Por outro lado, há também momentos em que nos revemos em Narciso, tentados a medir o nosso valor pelo reflexo que o mundo devolve. Talvez crescer seja isso, aprender a olhar sem nos perdermos no que vemos.

Termino esta crónica com um convite à reflexão e deixo uma pergunta que talvez nos perturbe, como deve fazer toda a boa pergunta filosófica:

Que valor tem o esforço num tempo que só aplaude a aparência?

Eugénio Oliveira

Eugénio Oliveira

5 novembro 2025