Há palavras que nos assustam pelo peso que carregam. “Morte” é uma delas. Dita em voz alta, parece roubar o ar, impor silêncio. E, no entanto, para quem vive a fé cristã – sobretudo à maneira franciscana –, a morte não é um ponto final, mas uma irmã que nos conduz ao abraço do Pai.
São Francisco de Assis, no seu “Cântico das Criaturas”, chama à morte “irmã”. É talvez uma das expressões mais desconcertantes e luminosas da espiritualidade cristã. Chamar “irmã” àquela que todos temem é um gesto de reconciliação profunda com a fragilidade da condição humana. Francisco não romantiza a morte — sente-lhe o frio, o mistério, a perda —, mas reconhece nela o eco do Criador. Na sua simplicidade radical, Francisco ensina-nos a morrer antes de morrermos: a morrer para o ego, para a posse, para o medo. Só assim se pode viver plenamente. A morte, neste olhar, é apenas a última entrega, o derradeiro “sim” de quem aprendeu a confiar.
Mas quem fica, sofre. O luto é a escola do amor que já não pode tocar, mas ainda pode amar. É o território da ausência, onde se aprende a reconhecer a presença de outro modo. A tradição franciscana convida-nos a olhar o luto não como um vazio estéril, mas como uma sementeira silenciosa. O choro torna-se oração, o silêncio transforma-se em comunhão. A saudade, quando oferecida, torna-se memória pascal — lugar onde a dor e a esperança se entrelaçam. Na lógica do Evangelho, a cruz nunca é a última palavra. O luto cristão não apaga a dor, mas dá-lhe sentido. Ensina-nos que amar é aceitar que o outro pertence primeiro a Deus, e que a separação, por mais cruel que pareça, é apenas um intervalo na eternidade.
O teólogo e sacerdote checo Tomáš Halík, que viveu a fé na sombra da perseguição comunista, afirma que “a fé cresce nas noites da alma”. Para ele, a experiência da perda e do luto não destrói a fé – purifica-a. No seu livro Tocar as Feridas, Halík propõe que o cristão não fuja das feridas da existência, mas as toque com reverência, como Tomé tocou as chagas de Cristo. É nesse toque vulnerável que a fé deixa de ser teoria e se torna encontro. A morte, nesta perspetiva, é um dos grandes “sacramentos da vida”: um lugar onde Deus se revela no despojamento. O luto é, então, o tempo em que o coração aprende a escutar esse Deus que fala em voz baixa, entre lágrimas. Halík diria que quem atravessa o luto com fé descobre um Deus que não está acima da dor, mas dentro dela. Um Deus que não nos explica o sofrimento, mas o sofre connosco.
Na espiritualidade franciscana, a esperança não é um otimismo ingénuo, mas um ato de confiança nua. É acreditar que mesmo a morte é atravessada pela luz da Ressurreição. Quando Francisco morre, canta. Morre pobre, nu, entregue – mas canta. Porque, para quem ama a vida como dom, a morte é apenas a última nota de uma canção de gratidão. Talvez seja essa a sabedoria que precisamos de recuperar: olhar a morte não como escândalo, mas como promessa. E viver o luto não como derrota, mas como peregrinação da saudade até à esperança. A visão franciscana e o pensamento de Tomáš Halík unem-se num mesmo convite: não fugir da morte, nem negar o luto, mas habitá-los com fé, ternura e coragem. Porque só quem atravessa o vale escuro com os olhos voltados para o Céu pode dizer, como São Francisco: “Louvado sejas, meu Senhor, pela nossa irmã, a morte corporal, da qual homem algum pode escapar.” E quem a chama “irmã”, já começou a ressuscitar.