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Por Entre Linhas e Ideias

Esta semana escolho um tema que pode dividir opiniões e despertar sensibilidades distintas entre os leitores. Trata-se de uma questão fraturante que atravessa o campo da moral, da filosofia, da cultura e da própria forma como habitamos o mundo que partilhamos com outros seres. Como é fácil de compreender, refiro-me à ética animal, um tema que procuro abordar não de forma emotiva ou ideológica, mas numa perspetiva ética e filosófica, pois raramente refletimos sobre o modo como tratamos os outros animais não humanos, numa relação muitas vezes marcada pela tensão entre o reconhecimento e o uso, e talvez por isso valha a pena levantar uma pergunta crucial: O que nos dá o direito, afinal, de usar os animais para fins humanos?

Reconheço que esta pergunta não é nova, mas sinto que continua a ser necessária. Desde Aristóteles que a filosofia procura justificar o lugar do ser humano na natureza, e foi precisamente aí que começou a nascer a ideia de que os animais existiriam para nosso uso. Aristóteles escreveu na Política que “a natureza nada faz em vão” e que os animais existem para servir o ser humano, numa visão da natureza onde tudo tem um fim determinado. Nessa perspetiva, os animais seriam instrumentos da vida humana, legitimando a sua utilização como meios para os nossos fins. Essa ideia, tão enraizada na tradição ocidental, começou a ser posta em causa quando a filosofia moderna, acompanhando os avanços da ciência, redefiniu o lugar do ser humano na natureza e mostrou que a fronteira entre nós e os outros animais é muito mais ténue do que se pensava. Foi então que Jeremy Bentham, um dos fundadores do utilitarismo, impôs uma reflexão simples mas decisiva ao afirmar que “a questão não é saber se os animais podem pensar ou falar, mas se podem sofrer”, abrindo assim caminho a uma nova forma de pensar a moralidade, deslocando o foco da razão para a sensibilidade. No século XX, Peter Singer, filósofo australiano e reconhecido defensor dos direitos dos animais, reforçou esse argumento no seu livro Libertação Animal, ao defender que “a igualdade não depende da inteligência nem da força, mas da capacidade de sofrer e de sentir prazer”, esclarecendo que o sofrimento é o verdadeiro critério da moralidade e que todos os seres capazes de sentir merecem igual consideração. Também o filósofo Tom Regan, norte-americano e um dos principais defensores dos direitos dos animais, afirma que estes são dotados de consciência e lembra-nos que possuem um valor intrínseco que não depende do interesse humano, reforçando, tal como Peter Singer, a passagem de uma ética do domínio para uma ética da consideração moral por todos os seres capazes de sentir.

Falo deste tema também por razões pessoais, pois vivi a infância e a juventude num meio rural onde os animais faziam parte da vida das pessoas e da economia familiar. Lembro-me de ter assistido, muitas vezes, a práticas rurais de sobrevivência em que o sofrimento dos animais era visto com indiferença, não por maldade, mas por razões sociais e culturais que faziam parte da vida daquele tempo. Essa experiência marcou-me profundamente e fez-me compreender que a necessidade, quando não é refletida à luz da ética, pode transformar-se em indiferença perante o sofrimento. Por isso, quando hoje se fala de ética animal, não o entendo como uma discussão teórica, mas como uma reflexão sobre o que vivi, sobre o que testemunhei e sobre aquilo que ainda me interpela.

Como professor, observo que a questão dos direitos dos animais é uma das que mais mobiliza os alunos nas aulas de Filosofia. Quando este tema é debatido, noto uma participação imediata e consciente, sobretudo entre os mais jovens, que convivem com animais e os reconhecem como parte da sua vida afetiva. Essa atitude revela uma nova sensibilidade moral, marcada pela preocupação com o bem-estar e pelos direitos dos animais.

Este tema é sensível e, à medida que o tempo passa, convenço-me de que a forma como tratamos os animais revela mais sobre a nossa própria humanidade do que imaginamos. Como escreveu Kant, “o coração dos homens vê-se na forma como tratam os animais”, lembrando-nos que o respeito que lhes devemos não é apenas um dever para com eles, mas também uma medida da dignidade moral de cada um de nós.

Fica o convite aos leitores para prolongarem esta reflexão e procurarem, em consciência, uma resposta à pergunta que desafia a nossa própria condição moral:
Podemos continuar a chamar-nos humanos se permanecermos indiferentes à dor dos animais?

Eugénio Oliveira

Eugénio Oliveira

29 outubro 2025