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Campos santos de flores, emoções e lágrimas

Celebramos no próximo sábado o Dia de Todos os Santos que antecede o Dia dos Fiéis Defuntos; é, então, o momento de transformar os cemitérios em Campos Santos de recolhimento, oração e reflexão profundos sobre os insondáveis mistérios da morte e da eternidade.

Apenas comecei, confesso, a visitar o cemitério da minha terra natal desde que meus pais (minha mãe, primeiro e meu pai, depois) lá moram; e, então, sinto que ali me conduz, fundamentalmente, a única, dura e crua verdade de que, perdidos os pais, agora será a vez dos filhos, a nossa vez de partir, como depois de nós a vez será dos nossos filhos, netos, bisnetos… numa interminável cadeia de ausência e misto de relações e afetos.

Depois, é neste núcleo de sentimentos que, frente à fria, muda e dura sepultura,

enfrento, aceito e convivo com a cruel certeza de que, brevemente, ali morarei também; e porque não é para lembrar ou chorar os que lá moram que lá vou e, muito menos, para fazer crer aos meus conterrâneos e amigos que ainda os lembro e guardo no coração.

Até porque penso que esta anual romagem ao cemitério escusada era; e só a relevo como momento exato de compasso de espera, de paragem na lufa-lufa diária de viver, de chegar primeiro e de vencer o que nos aflige; até porque os meus mortos, vivos continuam todos os dias comigo, seja à mesa de trabalho ou jantar, na mesinha de cabeceira, no escritório ou no sofá da sala, por toda a casa enfim, seja em fotografias, lugares vazios e recordações.

Agora, porque descendo de uma família numerosa, de muito cedo me habituei a conviver com a morte (de avós, tios, padrinhos, cunhados) ou seja com essa inevitabilidade que é a transitabilidade da vida, mormente, nessa quebra de laços, afetos, relações e cumplicidades; e, assim, é que verdadeiramente para mim só se morre quando se é esquecido; ou seja quando se apaga o lote dessas ligações, visíveis ou mentais, que nos cercam e acompanham.

Mas, acredito que muitos viventes, nos mausoléus que levantam, nas flores que carregam, nas lágrimas que vertem uma vez por ano frente aos túmulos dos seus antepassados pensam desta forma redimir-se do que, em vida, não foram para os que partiram; e, sobretudo, querem fazer ver aos demais que nunca os esquecem e, deste jeito, continuam a mostrar-se bons filhos, bons maridos, bons irmãos; e, ainda, pensam que é com laços e nós, com teias e tramas, com afetos e desafetos se tecem certos estados e formas de vida, não querendo, assim, enfrentar de todo a crua e dura verdade do silêncio pasmado das lajes e dos túmulos que os espera eternamente.

Agora, recordo, muito criança ainda, os gritos de dor que acompanhavam sempre os velórios e, sobretudo, o momento inexorável da partida do ente querido da residência familiar para a última morada; como igualmente relembro os longos, silenciosos e plangentes cortejos fúnebres, a pé, por veredas e azinhagas, sinalizados pelo dobrar pesado e longo que os sinos da torre cimeira da igreja punham na paisagem noturna de cômoros e vales.

Depois, até a dimensão da morte, apesar da Fé que a todos assistia e movia outro sentido e verdade mais dolorosos tinha; e crendo que com ela tudo que é real definitivamente se acaba e fina, momento é de intensa reflexão e tomada de firmes propósitos sobre o que somos e para o que vivemos.

E, então, que às flores e lágrimas vertidas, mesmo que uma vez por ano, sempre assista o propósito de fazermos de cada dia uma oblação de paz e amor que nos leve a sermos mais justos, mais solidários mais atentos e mais irmãos; e, mormente, que sejamos governantes mais empenhados, patrões mais humanos, trabalhadores mais conscientes e responsáveis, pais mais educadores, filhos e cidadãos mais comprometidos e ativos, enfim, todos empenhados na construção de um mundo mais solidário, fraterno e humano.

Então, até de hoje a oito.

Dinis Salgado

Dinis Salgado

29 outubro 2025