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A lei, o laicismo e a liberdade

Por estes dias, a par de outros assuntos, a aprovação de uma proposta de lei, apresentada pelo CHEGA, visando a supressão da burca do espaço público, afora algumas exceções (celebrações religiosas e outras) originou uma divisão notória na apreciação do teor do texto, assumindo algumas apreciações um claro pendor maniqueísta. 

É longa a luta pela liberdade e pelo laicismo. Voltando ao básico, podemos relembrar que a nossa primeira Constituição (1822), na senda de textos constitucionais antes aprovados em França ou em Espanha, define a liberdade dos portugueses como sendo o direito a não serem obrigados a fazer o que a lei não manda, nem a deixar de fazer o que a lei não proíbe. A par disso, este texto constitucional de 1822, progressista à época, frisa que a lei não pode validar o autoritarismo, estipulando o direito à liberdade de imprensa e de pensamento (conquanto frise que a religião da nação portuguesa é a Católica). Refletindo ainda o espírito da época, todos estes direitos conjugam-se fundamentalmente no masculino e, assim mesmo, com algumas restrições (direito de voto, heranças…).

A 1.ª República, pela mão do ministro da Justiça, Afonso Costa, aprovará uma famosa “Lei da Separação do Estado das Igrejas” (20 de abril de 1911), a qual coartará muitos dos direitos e prerrogativas tradicionais da Igreja Católica, redundando por isso numa forte crispação entre a República e a Igreja nos anos seguintes. Uma revisão desta lei ao tempo da governação de Sidónio Pais amaciará o texto, num país que procurava adaptar‑se à nova realidade. Posteriormente, sabemos, em 1940, já no Estado Novo, a relação entre o Estado e a Igreja será de novo reconfigurada, numa feição mais amigável para esta última.

Há um bom par de anos, ainda que o uso já tivesse esmorecido, foram removidos das escolas públicas todos os crucifixos, para que estes espaços se conformassem à laicidade estatuída na atual constituição (1976).

No respeitante às liberdades individuais, ainda na sequência da Revolução de Abril, uma nova lei (1977) virá a remover a supremacia patriarcal do “chefe de família” (o marido), estabelecida na legislação do Estado Novo, clarificando e consagrando agora a igualdade entre homens e mulheres na lei.

Lendo com atenção o projeto de lei do CHEGA, pode facilmente constatar-se que a fraseologia que o envolve veicula, desnecessária e repetidamente, um pendor antimuçulmano, tantas são as referências a esta religião (muito mais habilidosa, e abstrata, no seu articulado foi a mencionada Lei da Separação, nos seus 196 artigos, face à Igreja Católica então visada).

A atual Constituição assegura a liberdade religiosa, ditando que a liberdade de consciência, de religião e de culto é inviolável (nº 1, art.º 41º) e ainda que ninguém pode ser perseguido, privado de direitos ou isento de obrigações ou deveres cívicos por causa das suas convicções ou prática religiosa (nº 2, art.º 41º). Esta e outras disposições legais servem para animar as trincheiras daqueles que, no caso vertente, se colocam contra qualquer restrição à liberdade na indumentária utilizada em Portugal.

Queira-se ou não, ainda que motivada por alegada opção religiosa individual, a adoção de um traje como a burca reflete, inequivocamente, uma sujeição das mulheres em causa a uma opressiva dominação masculina, que tem como efeito diminuir a liberdade no feminino e, assim, de alguma forma, ferir o princípio da igualdade entre sexos.

A utilização, no espaço público, de vestuário como a burca ou afins pode ainda fragilizar a segurança geral nalguns contextos (manifestações e outros). E talvez deva ser este o enfoque substantivo (a segurança) na justificação preambular de uma lei que vise interditar a indumentária que oculte a identidade pessoal em diversos cenários públicos, conforme as sugestões de alguns juristas.

Não é difícil conceder que a utilização da burca em Portugal, por tão minoritária, não justifica hoje particular preocupação, ou apreensão, conforme aduzem os que se opõem a qualquer interdição. Todavia, as leis, ainda que tendam a privilegiar (em número e densidade) as situações mais comuns, não podem alienar questões incomuns, se consideradas relevantes.

Na Europa, aliás, são vários os países (não todos), com maior historial no curso da liberdade do que Portugal, que colocam hoje restrições (França, Dinamarca, Bélgica,…) ao uso da burca ou afins, sob o pretexto da segurança, da laicidade ou da efetiva assunção da liberdade pelas mulheres, no pressuposto de que esta indumentária é denotadora de uma condição feminina de sujeição. Talvez não precisemos de ser muito inovadores para assumirmos a laicidade, a liberdade e a modernidade.

Amadeu J. C. Sousa

Amadeu J. C. Sousa

25 outubro 2025