O crescimento do discurso ressentido do medo e do ódio, instalado nas nossas sociedades, revela algo bastante mais profundo que a disputa político-ideológico-partidária. Processos subjacentes, que permaneceram latentes na vida social, vem à superfície. A intolerância ganha estatuto de normalidade no espaço público, legitimando atitudes outrora refreadas pelo pudor coletivo.
Ao mesmo tempo, assistimos à devastação de Gaza, onde a população é dizimada. As memórias desaparecem junto com as casas, sob o peso da destruição. Este genocídio, como tantos outros, é o reflexo cruel daquilo que existe de mais desumano em nós, quando permitimos que a arrogância determine o rumo da história. Cada criança soterrada, cada família destroçada, cada pedra transformada em pó confronta-nos com o que a humanidade pode fazer quando converte o outro em um inimigo.
A intolerância, disfarçada muitas vezes de ironia ou desdém, move-se segundo a mesma lógica que lança-bombas sobre populações indefesas. Ambas violências nascem da incapacidade de reconhecer no outro um eu. A corrosiva divisão entre nós e eles, é o fundamento dos nacionalismos exacerbados e das suas violências militares.
As sociedades cativas dos autoritarismos, explícitos ou implícitos, são as mesmas que não souberam lidar com as suas feridas históricas, nunca cicatrizadas, lentamente transformadas em purulências de frustrações e rancor. A violência em grande escala é alimentada por violências quotidianas e pela indiferença que permite ignorar a dificuldade e a dor alheia, justamente porque parece alheia. E é nesse ponto que reside a tragédia: quando o ódio passa a ser aceitável e a indiferença deixa de nos ferir a consciência.
O que testemunhamos é a irrupção de forças que estiveram sempre à espreita, à espera de condições para emergir. Ao invés de enfrentarmos as nossas contradições, insistimos em negá-las, lançando-as sobre o outro. O crescimento das extremas-direitas, lado a lado com o massacre em Gaza, mostra-nos que ainda não aprendemos a reconciliar as nossas sombras com a promessa de humanidade que também nos habita.
Diante disto, o silêncio é cumplicidade. E não é apenas uma questão de apontar com o dedo, é reconhecer em nós a tentação de ceder ao ressentimento, à indiferença, à incapacidade de ver no outro uma extensão de nós. Se a história se repete nas suas formas de horror, é porque continuamos a projetar nos demais aquilo que não suportamos reconhecer em nós próprios.
Talvez, porém, ainda reste a possibilidade de interromper este ciclo. Para tal, será necessário o gesto de encarar de frente à violência do mundo e, em simultâneo, confrontar as sombras que carregamos dentro. Só assim evitaremos ser cúmplices, ainda que pelo silêncio, da tragédia em curso diante dos nossos olhos. Amanhã o outro, poderá ser qualquer um de nós.