No ano em que o Palácio do Raio assinala 10 anos de atividade como Centro Interpretativo das Memórias da Misericórdia de Braga, a Santa Casa da Misericórdia de Braga, com o apoio do Lab2PT/IN2PAST, FCT e o Departamento de História da UM, organizou nos passados dias 3 e 4 de outubro o seu quarto congresso, subordinado ao temaMisericórdias e Migrações, um encontro que reuniu especialistas e investigadores de renome nesta área do conhecimento.
Tendo-me sido dada a honra de proferir o discurso de encerramento, partilho com os leitores a adaptação encurtada do mesmo.
As migrações sempre marcaram a história de Portugal. Desde os navegadores que cruzaram oceanos em busca de novos mundos, até às vagas de emigrantes que, ao longo dos séculos levaram consigo a língua, a fé e a cultura, mas também a saudade e a necessidade de apoio. E foi precisamente aí que as Misericórdias se revelaram decisivas: no amparo dos que partiam, na assistência aos que regressavam, e até no suporte às famílias que ficavam.
Mas os emigrantes não foram apenas beneficiários da ação das Misericórdias; foram também protagonistas no seu fortalecimento. Quantas igrejas, hospitais, albergarias e lares não nasceram graças às remessas e doações de portugueses espalhados pelo mundo? Quantas obras de caridade, de assistência e de educação não foram financiadas por quem, mesmo longe, manteve acesa a ligação à sua terra e à sua confraria?
Hoje, olhando para o património material e imaterial das Misericórdias, reconhecemos que uma parte significativa da sua solidez foi garantida precisamente pelo contributo de quem viveu a experiência migratória. A diáspora portuguesa, presente em tantos continentes, tornou-se alicerce do que constitui a maior rede de solidariedade social do país.
O congresso também ajudou a refletir sobre os desafios contemporâneos. O mundo em que vivemos é marcado por mobilidades constantes: pessoas que saem em busca de melhores condições de vida, refugiados que fogem de guerras, famílias que procuram segurança, estudantes que atravessam fronteiras para aprender. E, perante tudo isto, as Misericórdias continuam chamadas a intervir.
O acolhimento, o apoio, a integração e a dignidade do migrante – seja ele português que parte, seja ele estrangeiro que chega – fazem parte da essência da nossa missão. Como outrora oferecemos pouso e amparo aos peregrinos de Santiago que passavam por Braga, hoje somos desafiados a oferecer a mesma hospitalidade aos viajantes do século XXI.
É essa dignidade que a Misericórdia de Braga e todas as Misericórdias de Portugal e da diáspora têm o dever de proteger e promover. Ao longo de cinco séculos, adaptámo-nos a novos contextos, enfrentámos guerras, crises económicas, transformações sociais profundas. Hoje, o desafio das migrações é também uma oportunidade para reafirmar o carisma que nos inspira: a prática das obras de misericórdia, que não conhece fronteiras, cor de pele, língua ou religião.
Três ideias-chave resultam destes dias de reflexão, a memória como responsabilidade, a diáspora como força viva, a hospitalidade como caminho. Num tempo em que tantas vezes se erguem muros e se semeiam desconfianças, as Misericórdias podem e devem ser exemplo de fraternidade concreta. Mais do que discursos, é a prática diária da caridade que pode transformar vidas.
É de sublinhar o simbolismo da reunião ter ocorrido em Braga, uma cidade marcada pela história das migrações, pela tradição da solidariedade e pelo dinamismo das suas instituições sociais e culturais. Não poderia haver melhor palco para o encontro.
As Misericórdias, ontem como hoje, são pontes de solidariedade em tempos de mudança. E se a migração é um fenómeno inevitável da condição humana, a misericórdia é e continuará a ser a resposta cristã e humanista que dá sentido a esse movimento.
O Papa Leão XIV ensina-nos que “mesmo quando tudo parece perdido, os migrantes e os refugiados permanecem como mensageiros de esperança… Ao mesmo tempo, as comunidades que os acolhem também podem ser testemunhas vivas da esperança, entendida como a promessa de um presente e de um futuro onde a dignidade de todos como filhos de Deus é reconhecida ". Há 801 anos no O “Cântico das Criaturas”, São Francisco de Assis, lembrou-nos que somos todos irmãos e irmãs, parte de uma mesma casa comum.
As Misericórdias, na sua missão, são chamadas a viver esta dupla consciência: de que cuidar do migrante é cuidar da criação e de que a hospitalidade é expressão da fraternidade universal