Ao entardecer do dia de hoje, Israel dará início à celebração de Rosh ha-Shanah1, a sua festa de Ano Novo e uma das datas mais importantes do calendário judaico. A Torah2 refere-se a este dia como Yom ha-Zikkaron (Lv 23, 23-25: “dia da recordação e aclamação”) ou Yom Teruah3 (Nm 29, 1-6: “dia do toque das trombetas”).
Celebrada no primeiro e segundo dias do mês hebraico de Tishri4, esta festa assinala não só o início do novo ano, como também o aniversário simbólico da criação do mundo (segundo o Talmude5, foi nesse dia que Adão foi criado), assim como o começo dos Yamim Noraim, os dez dias de arrependimento que culminam no Yom Kipur (Dia do Perdão). É um tempo de reflexão espiritual, de autoavaliação ou balanço moral da própria vida, de arrependimento (Teshuvah) e de retorno a Deus, mediante o pedido de perdão. Segundo a tradição, neste dia, Deus abre o Livro da Vida e avalia as ações de cada pessoa; julga todas as criaturas e escreve, num livro celestial, quem viverá ou morrerá nesse ano, quem terá alegria ou sofrimento, riqueza ou pobreza. O destino é selado dez dias depois, no Yom Kipur.
A celebração começa com o toque do Shofar, um instrumento de sopro feito de chifre de carneiro. O seu toque, qual despertador espiritual, chama ao arrependimento. Durante a festa, nas sinagogas, decorrem orações prolongadas, mediante a leitura de trechos especiais e cânticos solenes, como o Unetanneh Tokef, que fala do julgamento divino. Estes textos, tal como os das restantes festas estão compilados num conjunto de livros litúrgicos chamados Machzor6.
As comidas desta festa possuem uma carga simbólica muito forte: a maçã com mel exprime o desejo de um ano doce; a chalah redonda (pão doce) simboliza o ciclo do ano; a romã, pelos seus muitos grãos, sugere o desejo de méritos abundantes; o peixe ou a cabeça de carneiro/peixe indica liderança e prosperidade (“sermos cabeça e não cauda”).
Nos costumes mais típicos deste dia, o destaque vai para o Tashlich, a tradição de lançar pedaços de pão ao rio ou ao mar, simbolizando a eliminação dos pecados, bem como a saudação Shanah Tovah (“bom ano”).
Apesar da sua tonalidade reflexiva e recolhida, o Rosh HaShanah é também uma festa alegre, em que se celebra a vida, a renovação e a esperança de um ano melhor. Nesta dimensão, apresenta muitas semelhanças com a nossa festa de Ano Novo7.
Pode parecer estranho que nos detenhamos a tratar este e outros temas judaicos ou de qualquer outra religião. Não estranhemos, dado que, para além de ser um assunto com relevância cultural, não deixa de nos dizer respeito, pois somos, espiritual e culturalmente, descendentes do judaísmo (até os designamos como “nossos irmãos mais velhos”). Lido nesta perspetiva, o conhecimento dos costumes e práticas judaicas não nos desvia do essencial da fé. Pelo contrário, quando mergulhamos nas suas raízes, melhor compreendemos o sentido mais profundo das práticas e vivências religiosas que caraterizam e estruturam o cristianismo. Pessoalmente, gosto de assinalar estes momentos e descobrir neles o apelo primeiro e fundamental que preside ao convite ao arrependimento e à mudança de vida.
1 A expressão Rosh há-Shanah significa literalmente “cabeça de ano” ou “início de ano”. É a partir daqui que se contam os anos sabáticos e o jubileu. Há, na tradição judaica, mais três dias que dão início a um novo ano: o primeiro de Nisan assinala o ano novo para os reis e para as festas; o primeiro de Elul é o ano novo para os dízimos de animais; e o primeiro de Shevat ano novo para as árvores (os frutos delas tomados antes dessa data pertencem ao dízimo do ano anterior).
2 Torah significa “lei” ou “instrução”. Do ponto de vista técnico, o termo é usado para designar os primeiros cinco livros da Escritura (Génesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronómio). É um termo equivalente ao nosso termo Pentateuco.
3 A palavra Teruah designa um toque específico do Shofar, próprio para este dia.
4 É o primeiro mês civil e o sétimo mês religioso do calendário judaico. No nosso calendário gregoriano, situa-se entre setembro e outubro.
5 O Talmude (o termo significa “estudo”) é uma coletânea de livros sagrados dos judeus, um registo das discussões rabínicas que pertencem à lei e à ética judaicas, assim como aos costumes e à história do judaísmo. É um texto central para o judaísmo rabínico. Apresenta-se com dois componentes: a Mishnah, primeiro compêndio escrito da lei oral judaica; e o Guemarah, uma discussão da Mishnah e dos escritos tanaíticos que abordam outros tópicos.
6 As orações diárias e de Shabat encontram-se num outro livro, chamado Sidur
7 Nas grandes cidades de Israel, especialmente nas comunidades seculares, entre os imigrantes russos e os jovens, também se celebra o Ano Novo do tradição europeia, com o nome Sylvester. Não se tratando de uma festa oficial ou religiosa, é um dia normal de trabalho e de escola, em Israel. Esta festa é celebrada em casa ou nos bares, com contagens regressivas, músicas e bebidas. Muitos judeus não a celebram por causa das suas origens cristãs e pela sua proximidade ao calendário gregoriano, que não é usado no judaísmo.