Estamos a poucos meses de iniciar as comemorações em torno dos 50 anos do poder local, marcadas por um novo ciclo de governação autárquica, sufragado das eleições previstas para o próximo dia 12 de outubro. Infelizmente, como vem acontecendo ao longo deste quase meio século de Democracia local, os resquícios de uma ditadura, de que se alimentava o culto de personalidade, que lhe proporcionava “bem-estar político imaculado”, perdurou como se fosse coisa boa e natural. O país real aceitou este culto, esta veneração aos presidentes de Câmara, como parte da herança que o 25 de Abril lhe proporcionou com a Democracia e a Liberdade, nunca se livrando desse mal que “mina e funda” os alicerces de uma relação sadia entre eleitos e eleitores. Assistir ao comportamento destes autarcas que nada fazem para cortar a raiz a esta subserviência fatal em total penitência e que, pelo contrário, alimentam-na, sabendo que daí retiram dividendos como a dependência emocional, a espera do favor e a cristalização da atitude acrítica e inócua, desnecessárias à sã convivência em Democracia, é revelador de que nos falta fazer ainda muito para aí chegar, entenda-se, à maturidade democrática. Fomos capazes de deixar de olhar como figuras imaculadas para o polícia, o professor, o médico, o padre, antes padrões de referência no quotidiano dos portugueses, mas nunca fomos capazes de o fazer com os autarcas de quem os portugueses ainda se acham dependentes para resolver os seus problemas. Esta realidade está traduzida em números publicados em julho passado pelo MDP-Movimento pela Democracia Participativa que realizou um estudo sobre o Índice do culto de personalidade nas redes sociais dos presidentes de Câmara. Um dos seus autores, Rui Martins, na Análise Geral Aprofundada,conclui que “os resultados revelam uma perigosa tendência de personalização da política local, onde os autarcas privilegiam a construção de imagem pessoal em detrimento da discussão de políticas públicas. A hegemonia do centro-direita nas métricas digitais (mais de 105 mil pontos combinados) sugere uma estratégia coordenada de marketing político personalizado que pode estar a corroer os fundamentos democráticos da governação local”. Este culto é extensível ao PS que aparece em segundo lugar no trabalho divulgado a 4 de julho. Surpresa ou não, não é no interior do país, onde perdura o caciquismo e se privilegia o contacto pessoal que esta atitude tem maior impacto. No Top 10 das Câmaras Municiais por Taxa de Culto, aparecem Lisboa, Oeiras, Porto, Coimbra, Braga, Cascais, Guimarães, Moita e Tavira. Outra conclusão do estudo mostra que existe uma “disparidade extrema entre os líderes” (..) e indica uma “bipolarização digital preocupante”, onde alguns autarcas se tornam quase “influencers políticos” enquanto outros permanecem “completamente invisíveis”. Uma realidade que põe em causa “o debate democrático equilibrado e pode criar dependências problemáticas entre a eficácia governativa e a popularidade online”. Vale a pena fixar este número: 153 em 308 presidentes não têm qualquer presença digital, o que “é igualmente preocupante, sugerindo uma exclusão digital que pode comprometer a sua capacidade de comunicar com os cidadãos na era digital, criando uma democracia de duas velocidades.” Em que circunstâncias, fora ou dentro das redes sociais, mais personalizada ou não, o culto de personalidade é um cancro em Democracia, é uma doença fatal para a qual existe um bom remédio como propõe Rui Martins: regulamentação das redes sociais institucionais, reforma do sistema eleitoral local, fortalecimento da democracia participativa, educação para a literacia mediática, incentivos à governação colaborativa, controlo de algoritmo e bolhas digitais e fortalecimento do jornalismo local.