Falando de Abraão e Sara, de Isaac e de Jacob, a segunda leitura do próximo domingo (XIX do Tempo Comum/Ano C) afirma textualmente que “todos eles morreram na fé, sem terem obtido a realização das promessas. Mas, vendo-as e saudando-as de longe, confessaram que eram estrangeiros e peregrinos sobre a terra” (Hb 11, 13), uma expressão que diz não apenas a condição destes ilustres personagens bíblicos, como também aquela que é a nossa humana condição.
Na perspetiva poética e literária, a expressão que dá título a este texto assume-se como uma metáfora poderosa para evocar a vida humana enquanto travessia (é um facto que não temos aqui morada permanente); na perspetiva filosófico-existencial, pode refletir a sensação da brevidade da vida, ou até o sentimento de desalento, de desenraizamento e, porventura, de não pertença (de forma passageira e em busca de sentido, o ser humano está no mundo, realidade que não lhe pertence); na perspetiva social e política, cada vez mais na ordem do dia, evoca a condição dos migrantes e deslocados (há muitos seres humanos “em trânsito”, por razões externas [guerra, pobreza e busca de trabalho] ou internas [busca de identidade ou de superação pessoal]).
Integrada num capítulo que trata da exemplaridade da fé dos antepassados (Hb 11), a afirmação em epígrafe deverá ser lida e entendida, por força do contexto, em sentido religioso e espiritual. De facto, em horizonte cristão, não se trata apenas de uma expressão poética ou simbólica, mas de uma verdade central da fé: a vida terrena é uma jornada passageira, carregada de fé e de esperança, e “a cidade a que pertencemos está nos céus, de onde certamente esperamos o Salvador, o Senhor Jesus Cristo” (Fl 3, 20).
Os evangelhos apresentam Jesus como modelo supremo de estrangeiro e peregrino: nasceu longe de casa e viveu sem lugar fixo (Lc 9, 58: “O Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça”), foi rejeitado pelo mundo e voltou para o Pai (cfr. Jo 17). Não escapam a essa condição os seus discípulos que, vivendo no mundo sem ser do mundo (cfr. Jo 17, 16), não vivem de qualquer modo. Neste contexto se situa e se entende melhor a exortação forte e clara do autor de Primeira Carta de Pedro: “Caríssimos, rogo-vos que, como estrangeiros e peregrinos, vos abstenhais dos desejos carnais, que combatem contra a alma. Tende entre os gentios um comportamento exemplar, de modo que, ao acusarem-vos de malfeitores, vendo as vossas boas obras, acabem por dar glória a Deus no dia da sua visita” (2, 11-12).
Do ponto de vista teológico, a expressão “estrangeiros e peregrinos sobre a terra” evoca o desapego do mundo (o cristão vive com os pés na terra, mas com o coração voltado para Deus e, por isso, não se agarra aos bens materiais ou aos prazeres passageiros), a espera da plenitude na vida eterna (o cristão está a caminho rumo ao Reino de Deus e, nesse sentido, a morte não é o fim, mas passagem) e a tensão de quem vive no mundo, mas não se deixa corromper por ele (é esse o sentido de não se acomodar a este mundo [cfr. Rm 12, 2]), antes procura transformá-lo, sendo “sal da terra” e “luz do mundo” (Mt 5, 13-14).
De tudo isto, decorrem implicações práticas que importa realçar: a humildade de quem sabe não ser dono de nada, nem estar aqui para sempre; a solidariedade e a compaixão para com os peregrinos, migrantes, deslocados e marginalizados (se todos estamos de passagem, ninguém é verdadeiramente “de fora”); e a missão, pois o cristão, vivendo como estrangeiro e peregrino, não deixa de ser embaixador de Cristo (cfr. 2 Cor 5, 20), cabendo-lhe a tarefa de anunciar o Reino de Deus com palavras e ações. Por isso, não se instala nem se acomoda, mas caminha com os olhos fixos em Deus e rumo à Pátria celeste, fazendo o que deve fazer.
Numa altura em que, entre nós, se discutem leis para regular os fluxos migratórios, convém não se cair em exageros que neguem a nossa universal condição de estrangeiros e peregrinos sobre a terra, nem a tradição humanista e hospitaleira que, desde sempre, nos carateriza e dignifica. Importa que não olhemos para os estrangeiros como um qualquer objeto ou produto que se descarta quando, por motivos práticos, deixa de interessar ou, por motivos ideológicos, nunca se teve em conta ou até sempre se esteve contra. Por fim, urge criar condições para que os estrangeiros tenham, entre nós, uma vida digna e tal só é possível quando, depois de chegados e devidamente integrados, lhes criamos as condições para que trabalhem e vivam dignamente. A aplicação cega da lei é o pior serviço que se pode prestar à própria lei e às pessoas e situações que ela pretende regular.
Se é certo que, a este propósito, há muito a fazer, estou em crer que a primeira coisa é mesmo trabalhar a mentalidade de quem acolhe e de quem é acolhido. Da parte destes, espera-se que façam o que está ao seu alcance para se integrarem e que respeitem as pessoas, as leis e as instituições que os acolhem. Da parte de quem acolhe, urge que afastemos o estigma que pesa sobre os estrangeiros e passemos a olhá-los como irmãos que partilham a nossa mesma condição de “estrangeiros e peregrinos sobre a terra”.