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“Fica em silêncio enquanto as crianças dormem, não enquanto elas morrem”

É bem sabido: raras vezes o sofrimento se afigura tão pungente como quando surge espelhado no rosto de uma criança. E, no entanto, na quinta-feira, para testemunhar uma dor infantil imensa o diário francês Libération julgou preferível apresentar uma criança de costas. Não de frente, de costas. Ocupa a primeira página do jornal. Não nos olha. Não são os olhos vazios de uma criança esfomeada que nos interpelam. Tem as costas viradas para nós e é nelas que se encontram todos os sinais de uma fome extrema, talvez à beira da morte. O corpo oferece-nos uma imagem eloquente da extrema violência que Israel está a infligir às meninas e aos meninos de Gaza. Não estaremos à altura de poder enfrentar o olhar desolado desta criança, mas não podemos desviar o olhar da tragédia que se encontra nos sulcos que a fome inscreveu no seu dorso.

“Gaza. A fome”. São estas poucas palavras – lugar e tragédia – que estão no título ao lado da criança. Dão conta de mais uma denúncia sobre a fome que dizima a população. Cada novo relato corresponde a um patamar mais elevado de crueldade, a um nível ainda mais insuportável de violência. “As pessoas em Gaza não estão nem vivas nem mortas – são cadáveres ambulantes”, disse na quinta-feira o comissário-geral da Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados Palestinos, UNRWA [1].

“Estou a testemunhar a fome deliberada das crianças de Gaza – porque é que o mundo está a permitir que isso aconteça?”, perguntava, dois dias antes, no diário britânico The Guardian, Nick Maynard, cirurgião no Hospital Universitário de Oxford que, desde há 15 anos, vai regularmente a Gaza como voluntário da Ajuda Médica para Palestinos no Hospital Nasser [2].

O relato que faz é tremendo. “Estou a escrever no hospital Nasser, no sul de Gaza, onde acabei de operar outro adolescente severamente desnutrido. Um bebé de sete meses está na nossa unidade de terapia intensiva pediátrica, tão pequeno e desnutrido que inicialmente o confundi com um recém-nascido. A expressão ‘pele e ossos’ não faz justiça à maneira como o seu corpo foi devastado. Ele está literalmente a definhar perante os nossos olhos e, apesar dos nossos melhores esforços, somos impotentes para o salvar. Estamos agora a testemunhar a fome deliberada em Gaza”.

Nick Maynard confronta-se com algo que é novo e muito mais terrível: “Nada me preparou para o horror absoluto que estou a testemunhar agora: a transformação da fome em arma contra uma população inteira”.

O que está a suceder com os palestinos em Gaza, segundo Nick Maynard, “é bárbaro e totalmente evitável”, sendo inacreditável “que tenhamos chegado a um ponto em que o mundo vê as pessoas de Gaza forçadas a suportar fome e tiros, enquanto os alimentos e a ajuda médica permanecem do outro lado da fronteira, a poucos quilómetros de distância”. O cirurgião lança um alerta: “A desnutrição forçada e os ataques a civis matarão milhares de pessoas se não forem interrompidos imediatamente”. Ou seja: “Cada dia de inacção significa que mais crianças morrerão não apenas de balas ou de bombas, mas de fome”. Por isso se impõe imediatamente “um cessar-fogo permanente, a circulação livre e segura de ajuda através do sistema liderado pela ONU e o levantamento do bloqueio”.

Não é por falta de apelos e denúncias que a situação não se resolve. Na quinta-feira, a imprensa de todo o mundo concedeu um amplo destaque ao pedido de uma centena de Organizações Não Governamentais que instam os governos a “tomar medidas decisivas: exigir um cessar-fogo imediato e permanente; o levantamento de todas as restrições burocráticas e administrativas; a abertura de todas as passagens terrestres; a garantia de acesso a todas as pessoas na Faixa de Gaza; a rejeição de modelos de distribuição controlados por militares; a reposição de uma resposta humanitária baseada em princípios, liderada pela ONU, e a continuação do financiamento de organizações humanitárias imparciais e com princípios” [3].

As 111 Organizações Não Governamentais, entre as quais se encontram a Amnistia Internacional, a Cáritas, os Médicos Sem Fronteiras, os Médicos do Mundo, a Oxfam Internacional, a Pax Christi, a Save the Children, acusam Israel de usar a fome como arma de guerra, cometendo, assim, “um crime de guerra”. Travar o criminoso Benjamin Netanyahu e os seus sequazes é uma emergência humanitária. Di-lo ia, se pudesse, cada uma das inúmeras crianças esfomeadas que, às vezes com as suas mães, fomos encontrando ao longo desta semana nas primeiras páginas dos jornais.
 

[1] “Gaza: grave crise alimentar leva pessoal humanitário a ‘desmaiar de fome’

Disponível em: https://news.un.org/pt/story/2025/07/1850537

[2] Nick Maynard – “I’m witnessing the deliberate starvation of Gaza’s children – why is the world letting it happen?”. The Guardian, 22 de Julho. Disponível em: https://www.theguardian.com/commentisfree/2025/jul/22/gaza-israel-deliberate-starvation-ceasefire-aid

[3] “As mass starvation spreads across Gaza, our colleagues and those we serve are wasting away”. 23 de Julho. Disponível em: https://www.msf.org/mass-starvation-spreads-across-gaza


 

Eduardo Jorge Madureira Lopes

Eduardo Jorge Madureira Lopes

27 julho 2025