À porta da garagem do prédio onde moro, uma família que dele se ausentou por razões que posso deduzir, mas não afirmar, despejou a sua mobília e pertences vários encostados a uma parede de suporte; são colchões, aparadores, espelhos e gavetas dispersos que a ventania do tempo lhes tirou o préstimo e a serventia. Bocados duma vida. E quedo-me a pensar nas poupanças que fizeram para comprar aquilo tudo e o apego que tiveram porque os incorporaram na sua existência como pertences de uma personalidade. E tudo ali jaz morto, sem arrimo desse amor ou vaidade que os fez membros duma família e noto, pelo canto da análise de minha própria vida, se um dia os móveis e meus pertences também não estarão assim deitados ou encostados a esmo, como velhos de arrumar. E um suspiro se me escapa por saber, nem será preciso adivinhar, que aquilo que dantes eram de castanho e do mais caro, serão os parentes próximos destes cacos, despejada à porta da garagem do prédio onde resido. E valerá a pena poupar para ter mais isto e aquilo, e valerá apenas cobiçar aquele ou aqueloutro armário para serem depois olhados com indiferença como os móveis que foram desprezados à porta da garagem do prédio onde resido? E uma profunda inquietação sai da aspiração ingénua da perenidade e cria alojamento no que lhes vai acontecer. Nada é nosso, porque a vida continua a ser, apenas e só uma série de despedidas de bens e pessoas. Então vale tanto o lustre de cinco lâmpadas que se balança orgulhoso no alto da sala, como a pobre ledes que reluz diretamente do teto! Esta é a verdade do finito. Os herdeiros daquela gente que deixou para traz a mobília que agora é lixo depois de ter sido luxo, serão os herdeiros dos que irão trocar mobílias de castanho por mobílias de contraplacado. Mas vê-los assim abandonados e tristes, como alguém que foi posto fora de casa, e agora se veem sós e rejeitados, parecem-me ganhar sentimentos de vivos que choram tempos passados. Algumas peças já foram levadas destes despojos como cães adotados de um qualquer canil. Cai este sentir em mim como um desígnio que de todo não quero experimentar e, se a morte é o esquecimento, como dizem, então ainda bem porque é bem melhor que a dor do abandono. Se estes cacos ganhassem sentimentos, diriam, “já fomos alguém. Venham-nos buscar, senhores da autarquia. Estamos fartos da piedade que lemos nos olhos de quem passa e para uns segundos para olhar para estes fragmentos de uma vida, que deixaram de ser cacos para serem monstros. E aos desgraçados espalhados pela cidade, vai todo a nossa compaixão”.