twitter

Eclipse da lei, agora com selo fiscal

Um cidadão, notificado pela administração fiscal para pagar um imposto, crente das boas graças do Estado, responde que tal iria comprometer as suas outras dívidas e o grande afluxo de pagamentos naquele momento, apelando à compreensão, às regras do bom senso cívico, às boas práticas da sã convivência social, lamentando qualquer constrangimento e compreendendo o descontentamento. Fosse esse cidadão real – que não passa de fantasia – e estão-se a ver as consequências, não é verdade? A lei é para cumprir, dura lex sed lex já o diz o brocardo latino, a lei é dura, mas é a lei e então para o cidadão junto das finanças tem de ser cumprida com precisão cirúrgica, ou venha de lá uma coima que é coisa pouca, ou então uns juritos de mora ou, mais acutilante, uma penhora. Pois bem, se do lado do Estado para exigir sabemos que assim é, do nosso lado assim não é! No passado mês de maio, em dirigindo-se um advogado (e nessa veste) a serviço de finanças numa manhã, não de nevoeiro, mas ainda cedo, invocou aquele a preferência legal no atendimento. Eis senão quando a resposta foi que não havia senhas, teria que vir mais cedo, à abertura. Para isso não preferia, aguardava! Embora invocando a lei que não se compadece com tal posição e sensibilizando o “distribuidor de senhas” daquela, a mesma manteve-se. Porque a interpretação dos serviços atentava contra a lei e foi solicitado o Livro de Reclamações, obteve o Advogado, algum tempo depois, a resposta da Direção de Finanças respetiva. É aqui que percebemos que o Estado se arroga em não cumprir as leis da República! Com efeito, aquela resposta do cidadão com que iniciei este texto contém, em síntese, alguns dos argumentos da autoridade tributária; e onde se lê o comprometimento de outras dívidas e grande afluxo de pagamentos, deve ler-se comprometimento do serviço e grande afluxo de contribuintes. Nós temos que cumprir a lei, o Estado cumpre ou não, e se não, aquele, sem dizer que o pedido era ilegal – que não era já se vê – pede bom senso e sã convivência social (!?). É verdade que pode ser aborrecido para o cidadão (não para os serviços) ver-se ultrapassado na sua espera de atendimento pelo exercício da preferência legal dos Advogados – por isso estes profissionais podem ser comedidos na necessidade de o invocar – mas, se é o caso, mude-se a lei. Não dá é o direito do Estado boicotar a mesma, invocando ditames que lhe bem aprouver ou aquilo que muitos designam, de forma irónica, como direito circulatório, o das circulares que, não raras vezes, se sobrepõem à lei, sustentando-se em considerações e interpretações casuísticas de conveniência própria sem respaldo legal. Ou se muda, ou elimina a lei, ou cumpre-se! No cumprimento do estatuto constitucional dos Advogados, a lei n.º 145/2015 de 9-9 consagra aos Advogados um direito de atendimento preferencial nos serviços públicos. Este direito visou dar resposta à necessidade recorrente daqueles acederem aos serviços públicos no exercício das suas funções ao invés do comum cidadão que apenas o fará ocasionalmente. Já em tempos a Provedoria de Justiça esclarecia que não se traduz numa discriminação, antes no proteger de maior celeridade e eficácia no exercício de funções ao serviço da justiça. Mas o caricato é que nesse mesmo serviço de finanças está afixado cartaz de dimensões assinaláveis, sob a chancela da Autoridade Tributária e com grandes parangonas onde se pode ler: “Atendimento preferencial – a preferência no atendimento tem subjacente o reconhecimento de que estes profissionais agem em representação e nos interesses dos seus constituintes/clientes”. Só me vem à cabeça o provérbio “bem prega Frei Tomás, façamos o que ele diz, e não o que ele faz!” É sempre reconfortante assistir à forma virtuosa com que o Estado português aplica o princípio da igualdade e legalidade: todos somos iguais perante a lei e a devemos cumprir – exceto, claro, o próprio Estado! A lei, essa entediante formalidade que importa cumprimento rigoroso aos cidadãos, parece ser para as entidades públicas, um menu opcional, onde se escolhe obedecer apenas ao que dá mais jeito. Portanto, não se recomenda de todo, pois, a reciprocidade dos cidadãos, nem se atrasem com os vossos impostos que aí não há bom senso ou solidariedade que resistam.

António Lima Martins

António Lima Martins

16 julho 2025