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OS DIAS DA SEMANA Desconhecido nesta morada e a ascensão do ódio

 

 


 


 

Há escritoras e escritores extraordinários pelo talento com que captam os indícios aparentemente imperceptíveis presentes nos momentos inaugurais de trágicas mudanças de época. É o caso de Kathrine Kressmann Taylor (1903-1996), que, em Desconhecido nesta morada, obra de ficção recentemente reeditada em Portugal por Livros do Brasil, nos confronta com a ascensão do nazismo na Alemanha. Publicada originalmente nos Estados Unidos da América, na Story Magazine, em Setembro de 1938, Desconhecido nesta morada faria esgotar a revista em dez dias. O livro surge em 1939 pela mão da editora Simon & Shuster e terá um elevadíssimo número de exemplares vendidos.

O enorme sucesso da edição francesa no final do século XX terá concorrido para que a obra surgisse em Portugal em 2002. A primeira edição da Gótica apresentava, aliás, uma cinta referindo que o livro tinha estado 125 semanas na lista dos mais vendidos em França.

A apresentação de Desconhecido nesta morada pelas Éditions Autrement é exacta: “Incisivo, breve e com um final surpreendente, este livro capta a História com precisão. É um instantâneo, uma fotografia tirada na hora que descreve, sem complacência ou didactismo forçado, uma tragédia íntima e colectiva, a da Alemanha nazi”.

No texto do posfácio da edição francesa, Whit Burnett, director da Story Magazine, considera que, com esta obra, “a literatura americana ficou enriquecida com uma raridade literária: a novela perfeita”. A história contada, acrescenta o posfaciador, “diabolicamente hábil na sua concepção, mas de uma evidência, de uma naturalidade absoluta na sua forma expressiva, é daquelas em relação às quais tanto o leitor médio, quanto o escritor profissional se sentem familiarizados: ‘Eu podia ter escrito isto. Como é que não pensei nisto antes?”, dizem eles, comovidos e consternados”. Whit Burnett cita a seguir Goethe que diria que, perante qualquer obra genial, “cada um reconhece uma ideia pessoal não concretizada”.

Ao contrário das duas editoras portuguesas, as Éditions Autrement não incluem, na indicação da autoria, o nome Kathrine, mantendo a omissão que se verificava nas edições originais. Os primeiros leitores ficavam, assim, sem saber que Kressmann Taylor era uma mulher e mãe de três filhos. Um deles, Charles Douglas Taylor, assina o posfácio da recente edição portuguesa, nele recordando que os editores julgaram que “a história era ‘forte demais para aparecer sob o nome de uma mulher”. Kressmann Taylor seria o nome profissional que a escritora aceitou e manteve sempre.

Desconhecido nesta morada é construída a partir da troca de correspondência entre Max e Martin, amigos íntimos e coproprietários de uma galeria de arte nos Estados Unidos da América, na Califórnia. Começam a escrever-se quando Martin decide voltar para a Alemanha, país natal, no fim de 1932. As missivas, trocadas entre 12 de Novembro desse ano e 3 de Março de 1934, com um epílogo quinze dias depois, permitem observar como se vai instalando o ódio e o nazismo se vai impondo.

Quem nada soubesse sobre esses anos terríveis da História do século XX ficaria estupefacto ao constatar a capacidade ou o poder que um chefe e a sua cruel ideologia tiveram para corroer por completo a alma de pessoas comuns, tornando-as crédulas e cínicas (para usar termos de Hannah Arendt [1]), conduzindo-as a espezinhar o valor da amizade e a sentir um total desdém pela vida humana. Desconhecido nesta morada pode ser lido como um antídoto contra esse desamor. O ódio não é coisa do passado.


 


 

[1] O Sistema totalitário. Publicações D. Quixote, 1978


 

Eduardo Jorge Madureira Lopes

Eduardo Jorge Madureira Lopes

13 julho 2025