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Uma questão de berço

Desde há algum tempo que me seguro a uma barra horizontal junto à porta traseira do autocarro quando me desloco no 45 e não apanho banco a jeito ou de que goste para ocupar durante os quinze minutos que distanciam o centro da cidade da paragem perto de casa. Aprendi a gostar mais de transporte público do que pegar na viatura particular e enfrentar o trânsito, tantas vezes caótico, e o estacionamento com poucos lugares sem cobrança.


 

Fez ontem uma semana, apanhei na Avenida o das 14:15. Havia muitos jovens à espera do mesmo autocarro que talvez tivessem por objectivo ir para a praia fluvial da Ponte do Bico. Coloquei-me na fila e quando me aproximei da porta da frente duas meninas deixaram-me entrar antes delas. Ainda que tivesse lugar para me sentar, aproveitei para me posicionar para observar desde o sítio do costume, junto à porta de saída. Na paragem de Infias havia também uma significativa fila de jovens e, a par destes, entrou também uma pessoa já com alguma idade, ainda que não idoso para os dias de hoje. Os quatro bancos destinados prioritariamente a idosos e a invisuais estavam preenchidos, três dos quais por jovens. O Leonardo, um dos jovens que aí se sentaram, apressou-se a dar o lugar ao senhor que acabara de entrar, mas este declinou a oferta e agradeceu. O jovem ainda insistiu uma e outra vez, mas o adulto já entradote na idade prescindiu da prioridade. O gesto do jovem foi bem apreciado, primeiramente, pela D. Ema que viajava no banco de trás e depois por um ou outro utilizador do meio de transporte sem que eu tenha fixado os rostos dos últimos. Apreciei particularmente o gesto do jovem Leonardo e da D. Ema, fixei-me neles de uma maneira mais atenta porque representaram o contrário de muitos outros registos que eu guardava na memória da minha retina para um dia escrever sobre o assunto neste espaço e fazer eco da pouca ou nenhuma educação de muitos jovens e, algumas vezes, dos pais destes perante situações análogas ou piores ao não convocarem os filhos que seguem a seu lado a dar lugar a adultos a necessitar mais dos bancos. Não podia adiar por mais tempo a crónica que começara a alinhavar mentalmente há uns tempos atrás e deixara que fosse sucessivamente ultrapassada por outros títulos mais prementes.


 

Conheci o Leonardo naquele dia, quando pude aproximar-me do banco onde se sentava – um pouco antes de chegar à paragem do meu destino – para lhe perguntar o nome. Muito rapidamente expliquei-lhe por que queria saber a sua graça: estava a preparar um artigo para publicar no Diário do Minho sobre a insensível e desrespeitosa ocupação daqueles quatro lugares destinados a ocupantes prioritários. Naquele dia até não havia idosos ou pessoas com necessidades especiais a utilizar aquele transporte naquela parte do veículo, mas nem sempre isso acontece e quem está instalado, não raro, julga-se com direito a manter o lugar que conseguiu antes perante a entrada posterior de pessoas mais idosas, fazendo olhos de quem nada está a ver nada à sua volta. O ruído de fundo e o meu ouvido duro tinham-me impedido de ouvir qual era a graça da pessoa que tinha apertado o ombro do jovem generoso, educado e gentil a não ser quando teve a bondade de me soletrar as três letras do seu nome próprio sem questionar a razão do meu interesse. Não sei se conseguiu perceber que eu precisava do seu nome para esta crónica pois o autocarro chegou rápido à paragem em que eu devia descer, mas pode ser que a dita senhora tenha a oportunidade de ler o seu nome hoje nestas linhas que os dedos escreveram encadeando palavra a palavra, letra a letra.


 

Vi muitas vezes insensibilidade por parte de jovens e de adultos não prioritários perante a presença de pessoas idosas e de outras frágeis. Atribuo isso à falta de berço e não me refiro à coisa física, material, mas à educação, ao comportamento. Não me refiro à condição social, mas à ética, ao respeito pelos outros, à nobreza dos gestos. A atitude do Leonardo é uma questão de berço, o toque de carinho da D. Ema no ombro direito do jovem o reconhecimento da singularidade, nos tempos que correm, de olhos que não veem apenas o próprio umbigo.

Luís Martins

Luís Martins

8 julho 2025