twitter

Espiritualidade na perda: quando o invisível nos sustenta

Há perdas que não têm nome. Silêncios que se instalam em nós como moradas secretas. Quando alguém morre, algo em nós também se transforma. O mundo continua igual por fora, mas por dentro, nada permanece como antes. É aí, nesse intervalo entre o que se vê e o que se sente, que a espiritualidade pode emergir como caminho. Não como resposta pronta, mas como uma presença silenciosa que acompanha.


 

Falar de espiritualidade no luto é tocar num território íntimo, por vezes ferido. Muitos confundem espiritualidade com religião, e embora possam coexistir, não são sinónimos. A espiritualidade não exige templos, rituais ou crenças. É antes um gesto interior: o reconhecimento de que há algo maior – seja a natureza, a memória, o amor – e que esse algo pode sustentar-nos quando tudo parece ruir.


 

No luto, as palavras tornam-se pequenas. As perguntas aumentam. A lógica, por vezes, falha. E é precisamente aí que a espiritualidade se torna abrigo. Não para explicar o inexplicável, mas para permitir que a dor exista. Quando tudo desmorona, é natural surgir a pergunta: como continuar? A espiritualidade não responde por nós, mas senta-se ao nosso lado enquanto procuramos.


 

Cada pessoa encontra esse “algo maior” de forma única. Pode surgir no silêncio de uma caminhada, na luz de uma vela acesa, numa carta escrita a quem partiu, numa canção que desperta memórias, num sonho que consola. Pode estar numa árvore plantada ou num caderno onde se desenha o que se sente. Em palavras sussurradas ao vento. Em tudo o que liga o que está cá com o que já partiu – mesmo que ninguém mais entenda. Tudo isso é espiritual.


 

Cuidar da espiritualidade no luto é também permitir-se abrandar. Vivemos numa sociedade que valoriza o visível, o imediato, o funcional. Mas o luto exige tempo, silêncio e profundidade. É um processo de digestão da ausência. É tornar habitável uma vida onde falta alguém. Espiritualidade é, então, escutar o invisível: os sentimentos, os pressentimentos, a intuição. Aquilo que não se vê, mas pulsa. Aquilo que não se explica, mas que sustém.


 

Há ainda a espiritualidade que se manifesta no encontro humano. No abraço e na escuta que não julgam, na presença que não exige. Há algo profundamente espiritual em ser acompanhado na dor por alguém que simplesmente fica e que não tenta consertar. Nesses encontros, a espiritualidade deixa de ser uma ideia e passa a ser experiência. É pertença. É saber que, mesmo sem respostas, não estamos sós.


 

Num tempo que espera de nós resiliência imediata, talvez seja urgente recuperar a delicadeza. Lembrar que chorar, sentir raiva, cansaço, confusão, é parte do caminho. Que não saber o que dizer pode ser mais verdadeiro do que repetir frases feitas. A espiritualidade no luto convida-nos à honestidade emocional e à coragem de não fugir de nós mesmos.


 

Se há algo que essa dimensão mais profunda nos oferece é essa sabedoria discreta: a dor faz parte da vida e o amor não termina com a morte. Talvez não sejamos os mesmos depois da perda, mas podemos crescer com ela. Não para esquecermos quem partiu, mas para vivermos com mais consciência, com mais presença, com mais verdade.


 

No fim, talvez não sejam precisas grandes respostas. Basta, por vezes, um gesto pequeno: caminhar descalça na terra, respirar junto ao mar, escrever uma carta à noite. Estes rituais silenciosos, feitos com intenção, são formas de escutar o que só o coração entende. E talvez, nesse espaço sagrado, possamos reencontrar algo de nós – e de quem amamos – que permanece.

Clarisse Queirós

Clarisse Queirós

8 julho 2025