Nem sempre se consegue o que se quer e nem sempre o que não se quer deixa de surgir, como algo inevitável, na vida duma pessoa. Há tempos, telefonou-me um velho amigo muito nervoso, porque se encontrava num estado de saúde bastante precário. Tinha-me confessado há dias a sua incapacidade para enfrentar certas situações, que, até há bem pouco tempo, não lhe pareciam difíceis de resolver.
Perguntei-lhe se pensava com frequência e sem receio na idade que tinha e nas alterações normais que o andar dos anos provoca em nós. Manifestou-me o seu desagrado pela sugestão que lhe propus e resmungou autenticamente, dizendo que não estava velho. De facto, era um bom desportista, realizando diariamente, depois de se reformar, várias corridas, ou melhor, passeios apressados, pelos arredores da sua casa. Também, duas vezes por semana, nadava na piscina mais próxima.
No entanto, com certa frequência, confidenciava comigo, velho companheiro, algumas surpresas que o afectavam de sobremaneira. Por exemplo, sentia-se muito fatigado quando terminava as suas corridas higiénicas e tinha certa dificuldade em encarar a sua presença na piscina. Como que uma retração incómoda, parece que se apoderava da sua cabeça. Era como que um convite a desistir dos exercícios aquáticos. No princípio do ano corrente, sentiu esta tentação com mais imtensidade, talvez devido a uma gripe que o abalou e transtornou durante uma semana. No início, encheu-se de medo, tendo a impressão de que o seu fim se aproximava com celeridade. Telefonou-me, atordoado, pedindo-me que o visitasse logo que pudesse, já que se sentia perplexo e sem energia.
Quando o fui ver, estava mais calmo. O médico - outro seu amigo de sempre - tranquilizou-o, explicando que uma gripe era sempre um período de má disposição. Que não imaginasse montanhas inóspitas e inultrapassáveis, mas apenas numa espécie de apeadeiro incómodo em que o comboio da vida parou alguns instantes, mas logo a seguir retomatria a sua marcha com normalidade. Perguntou-lhe se seria bom praticar algum desporto, como sempre o fazia diariamente, mas o médico foi peremptório. “O teu comboio parou num apeedeiro para descansar e recuperar forças. Toma a medicamentação que eu te passei, está quietinho e no teu quarto de dormir alguns dias e depois já poderás voltar às correrias e à piscina. Tem paciência...”
Mais tranquilo, mas aborrecido por ser obrigado a ficar na cama, assim me recebeu. Era evidente que devia ter alguma febre e sentia dificuldade em pensar e falar com normalidade. Recomendei-lhe que obedecesse ao médico e estivesse bem agasalhado. Levei-lhe um livro para ele se entreter, recomendando-lhe, no entanto, que o lesse com pausa e sem a ânsia de o acabar no mesmo dia. Tal como nas suas corridas, a leitura era uma paixão que o descontrolava facilmente, dedicando-lhe - sobretudo desde que deixara o emprego - muitas horas seguidas do dia a dia e também, como a sua mulher se me queixava, gastando muita luz durante as noites.
Felizmente, o seu estado de saúde evoluiu no bom caminho e sem percalços. Um dia, ao sair de casa, descobri que o meu amigo já voltara à rua e ao seu atletismo. Quando entrava no meu carro, parou junto de mim com cara alegre: “Cá ando outra vez a correr. Mas a constipação deixou-me um recado: “Estás velho e toma cuidado!” Ri-me com satisfação pelo aviso que recebera. E o meu amigo acrescentou: “Não te esqueças dos meus anos. São na próxima 5.ª Feira. Junto mais um aos 82 que já cá cantam!”... E prosseguiu o seu caminho com ligeireza...