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Velhas amizades

Já não é primeira vez que, ao pensar no tema destas linhas que costumo escrever, não tenha bem consciência do que devo tratar. No entanto, a vida quotidiana é sempre uma sementeira de motivos para abordar. 

Não há momentos nem circunstâncias vazias ou ocas. Sempre existe uma referência, um lamiré, chamemos-lhe assim, que desperta a nossa atenção. Quanto mais não seja, para que tomemos consciência do momento que estamos a viver e no qual participamos com um agente activo.

Há dias, por exemplo, era o dia de aniversário de um velho amigo. “Velho” ... em todos os sentidos, como veremos. Não podia deixar de lhe dar os parabéns. A amizade entre nós dois, tão antiga quase como a nossa própria vida, assim o reclamava. Por isso, um telefonema era exigido, preparando deste modo uma breve passagem posterior pela sua casa.

E assim foi. Atendeu-me uma empregada, velha “funcionária” de sempre, que o acompanhou praticamente toda a sua vida de casado e, agora, desde há três anos, na saudosa viuvez e um certo isolamento. A vida não lhe dera descendência e os parentes mais próximos viviam noutras cidades. Sentia-se muito só, mas aquela mulher sempre o ajudava a vencer os seus dias de reformado, desde que chegava pela manhã e o deixava a meio da tarde, quando regressava ao seu lar para tratar da família.

Perguntei-lhe se estava o meu amigo. Respondeu-me afirmativamente e pedi que o chamasse. Assim o fez. A surdez do “festejado” levou a que ele não descobrisse quem lhe falava. E primeiro que entendesse que era eu, seu velho amigo, foi preciso berrar várias vezes e ouvir, insistentemente: “Mas quem fala? Quem fala?” Dizia-lhe o meu nome. Em vão. “Quem?… Quem?... Podia, se faz favor, falar mais alto...” A empregada interveio, com a experiência de quem sabia que se não lhe dissesse, bem alto, quem estava do lado de lá da linha, as suas perguntas continuariam sem resultados positivos.

“Ai, és tu, caríssimo. Há algum problema...?” Gritei, com todas as minhas forças: “P-A-R-A-B-É-N-S!” Não percebeu. E perguntava, preocupado: “O que é tu tens...?” A empregada interveio novamente, explicando-lhe os motivos que me levaram a contactá-lo. Enfim, sossegou, mas continuava sem perceber bem porque o chamava: “Porque me dás os parabéns...?” Apetecia-me desistir, mas a velha amizade e a compreensão das dificuldades que o meu amigo tinha na sua audição, e até na compreensão de algumas situações que já não era capaz de abarcar plenamente, levaram-me a desligar o telefone, fazendo, em seguida, nova chamada que foi atendida pela empregada. Disse-lhe para comunicar ao meu amigo a razão do meu telefonema e que, pela tarde, passaria pela sua casa para lhe dar um abraço e deixar-lhe alguns daqueles pastéis que ele tanto apreciava. E assim foi.

P. Rui Rosas da Silva

P. Rui Rosas da Silva

1 julho 2025