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PRR na Saúde: Entre a urgência de reconstruir e a armadilha da burocracia

 

 



 

O Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) prometia ser uma oportunidade única para reinventar o Serviço Nacional de Saúde (SNS). Era suposto ser o impulso para a modernização, mas, na prática, tem-se tornado num labirinto de atrasos, promessas por cumprir e potencial desperdiçado. Com 22,2 mil milhões de euros em jogo - e 1.463 milhões realocados para Saúde, Ciência e Empresas em 2025 -, Portugal arrisca deixar o futuro do SNS preso a pilhas de papel e processos que bloqueiam a verdadeira mudança.

A execução do PRR na Saúde está refém de uma "teia burocrática" que, muitas vezes, parece feita para complicar. Prazos apertados, como o do corte de financiamento para obras não concluídas até junho de 2026, colocam várias instituições à beira do colapso financeiro.

Mas a burocracia não é um acidente: é um sintoma de um sistema que prefere controlar a resolver. Enquanto a Comissão Europeia alerta para a urgência da utilização dos fundos, Portugal continua a gastar tempo a preencher formulários, em vez de construir camas ou contratar médicos. A descentralização da Saúde é um exemplo claro: só 92 municípios assinaram acordos de transferência de competências, muito abaixo dos 190 exigidos.

A solução? Adiar prazos e renegociar metas, numa dança de soft power com Bruxelas. 

O SNS perdeu metade dos médicos recrutados entre 2020 e 2024, um dado que expõe a miopia do PRR. Apesar de o Plano Estratégico de Gestão de Recursos Humanos (PGERH-SNS) prever "planos plurianuais de contratações", a realidade espelha concursos desertos, salários estagnados e profissionais à beira do burnout.

O componente de Recursos Humanos do PRR injeta fundos em equipamentos, mas não resolve o problema central: a falta de atratividade das carreiras. Enquanto o Reino Unido aposta em modelos dinâmicos de formação e retenção, Portugal continua a insistir em soluções há muito ultrapassadas, para problemas atuais. A Comissão Europeia já avisou: sem medidas para travar a fuga de cérebros, o acesso universal à saúde vai tornar-se (ou continuar a ser) uma utopia.

No digital, Portugal é o quarto país da UE que menos investe em transição digital no PRR - apenas 21% do total, contra 30% da média europeia. Os 300 milhões para a Transição Digital na Saúde concentram-se em infraestruturas, mas falham em integrar sistemas ou capacitar profissionais. Resultado? Hospitais com software de ponta, mas sem quem lha saiba dar uso.

A obsessão pelo hardware ignora as lições que deveriam ter sido retidas na pandemia: dados desconectados e falta de interoperabilidade dificultam a telemedicina e a gestão de doentes crónicos. Enquanto a Estónia usa o PRR para criar sistemas preditivos de saúde pública, Portugal gasta milhões em “circuitos digitais do medicamento” que não interagem com as farmácias.

O PRR na Saúde acaba por ser um espelho das contradições portuguesas: ambicioso no papel, mas frágil e deficiente na execução. Perde-se a oportunidade de usar os fundos para revolucionar a gestão hospitalar, atrair jovens médicos ou criar redes digitais inteligentes. Em vez disso, opta-se por remendos tecnocráticos e metas inflacionadas, enquanto o SNS sangra recursos humanos.

A Comissão Europeia já apertou o cerco: as recomendações de 2025 exigem “ação decisiva” para evitar a “perda de credibilidade”. Resta saber se Portugal vai usar os próximos 18 meses - até dezembro de 2026 - para resgatar o PRR, ou se vai continuar a enterrar o futuro do SNS em relatórios e reuniões intermináveis. A saúde não pode ser refém de uma checklist burocrática.

Mário Peixoto

Mário Peixoto

28 junho 2025