twitter

Cuidar de almas em tempo de tormenta

 


 

São 00h08. Lá fora, o mundo já dorme, mas por aqui a luz continua acesa. Entre testes por corrigir, testes adaptados para preparar e outros — ainda mais exigentes — altamente adaptados, perde-se a noção do tempo. Cada folha representa um desafio distinto, um retrato de um aluno que exige atenção, sensibilidade, tempo. Entre o cansaço que se acumula e o sentido de missão que resiste, ela continua. Porque ensinar não é apenas avaliar — é tentar chegar a todos, mesmo quando cada um parece falar uma língua diferente.

Um colega, em tempos, usou uma analogia certeira: o professor é um médico da pedagogia. Mas, ao contrário do médico, não atende um paciente de cada vez. Todos os dias, dezenas de “pacientes” entram pela sala dentro — cada um com as suas dores, dúvidas, silêncios e feridas. E o professor, com um único comprimido de tempo e recursos, é obrigado a decidir: para quem? Como? Com que efeito?

A sala de aula transforma-se, então, num palco de malabarismos infindáveis. Há programas rígidos para cumprir, burocracias para preencher, pressões para gerir. Há expetativas, frustrações, contextos familiares que interferem — tudo isto enquanto se tenta ensinar, escutar, acolher. Ser professor é ser maestro de uma orquestra desafinada, onde cada aluno parece tocar uma partitura diferente.

Mas ser professor é ainda mais do que isso. É sair de casa todos os dias e, muitas vezes, deixar os próprios filhos para trás, para cuidar dos filhos dos outros. É trabalhar sem saber a que horas regressa, porque há sempre mais uma correção, mais um plano, mais uma urgência. É saltar de escola em escola, como se fosse uma peça substituível, adaptando-se constantemente a novos alunos, novas regras, novos colegas, novos diretores. É viver numa montanha-russa sem fim — instável, exigente, emocionalmente esgotante.

E, no meio de tudo isso, surgem as críticas. Velhas e novas. Diz-se que os professores são preguiçosos, desatualizados, desmotivados. Que estão no ensino porque não foram capazes de mais. Cesário Verde já o denunciava, em O Sentimento do Ocidental, ao retratar o professor de latim como um homem gasto, um vagabundo faminto, esquecido no final da carreira. A imagem é dura — e não por acaso. Desde sempre que a profissão docente carrega o peso da invisibilidade, do desprezo subtil ou declarado. Ser professor, ontem como hoje, é muitas vezes habitar as margens: da valorização, da estabilidade, da justiça. Um século depois, o retrato cruel de Cesário continua a ecoar nas salas mal equipadas, nos contratos precários e no silêncio social perante o desgaste de quem educa.

Hoje, porém, há um agravamento inquietante: a violência e a falta de respeito. Em algumas escolas, há apostas entre alunos sobre quem irá provocar ou humilhar o professor. E em certos contextos, a agressão é real. Como se chegou aqui? A resposta é tão simples quanto alarmante: quando o pai desrespeita o professor, o filho aprende a fazer o mesmo. A autoridade do docente tem sido corroída — em casa, na rua, nos meios de comunicação — e com ela esvazia-se a dignidade da escola.

Ainda assim, há professores que persistem. Que entram na sala com vontade. Que acreditam, como Camões, que a única forma de escapar à “lei da morte” é deixar marca naqueles que por eles passam. Porque ensinar é mais do que transmitir conteúdos — é tocar vidas. Muitas vezes, é como pregar a Santo António: falam-se palavras que parecem cair em vazio. Mas insiste-se. Experimenta-se uma estratégia hoje, outra amanhã. Às vezes, a melhor ideia falha. Outras, a mais simples resulta. Ensinar é isto: tentativa, erro, esperança.

É urgente que a sociedade recupere a memória e cultive empatia. Todas as profissões são dignas, mas nenhuma se constrói sem professores. O docente é raiz e semente — mesmo quando não chega a ver a árvore crescer.

Mais do que salários dignos — que também são necessários — o professor precisa de respeito. De escuta. De reconhecimento. Porque sem professores valorizados, não há escola que funcione, nem país que evolua.

Enquanto a profissão docente continuar a ser empurrada para a sombra, continuarão a faltar aulas, professores e rumo. E quem garante que, num futuro não tão distante, os filhos e netos deste país terão sequer um docente diante de si? Talvez, nessa altura, nem as escolas privadas possam servir de refúgio. Porque quando se despreza quem ensina, destrói-se lentamente o alicerce de qualquer democracia: o direito a aprender. E enquanto a escola for tratada como acessório — ignorada por quem governa, desprezada por quem devia protegê-la e instrumentalizada por forças políticas — a ignorância continuará a crescer. Porque numa sociedade mal informada, não vence quem tem razão, mas quem grita mais alto. E nesse terreno fértil para a manipulação, quem pensa perde voz.

Mas por onde começar? O buraco parece tão fundo que ninguém vê o fim. Ainda assim, alguma coisa tem de ser feita. Um país sem educação é um país sem rumo. É frágil, manipulável, inimigo do pensamento crítico. E enquanto nada mudar, Portugal continuará a viver de costas voltadas para o futuro, preso aos últimos lugares da Europa — cultural, social e economicamente. Nunca será, como desejou Fernando Pessoa, a cabeça que olha para a Europa. Será apenas o corpo cansado que carrega os sonhos que nunca deixámos florescer.

default user photo

Sara Silva

22 junho 2025