Na semana passada, apresentámos o significado bíblico dos números 1 a 12. Desta vez, detemo-nos nos números maiores que também povoam o universo da Escritura e que, na sua maioria, se assumem como simbólicos.
Começamos pelo 14, usado na genealogia de Jesus: “o número total das gerações é, desde Abraão até David, catorze; de David até ao exílio da Babilónia, catorze; e, desde o exílio da Babilónia até Cristo, catorze” (Mt 1, 17). Sendo o número gemátrico do rei David (D [4] + V [6] + D [4] = 14), “o evangelista quis dizer que Jesus é o ‘tríplice David’ e, portanto, o Messias total”1.
Carregado de simbolismo está também o número 40, que aponta para uma mudança de ciclo (40 são os anos de uma geração) e para o tempo da purificação e da instrução. No dilúvio, choveu durante 40 dias e 40 noites (Gn 7, 12), sinal de purificação da humanidade. O povo de Israel caminhou 40 anos no deserto, antes de entrar na Terra Prometida (Nm 14, 33-34). Moisés permaneceu 40 dias e 40 noites no Sinai para receber a Lei (Ex 24, 18) e Elias peregrinou, durante 40 dias, até lá (cfr. 1 Rs 19, 8). Em ambos os casos, se sinaliza a mudança de suas vidas, na preparação espiritual e no encontro com Deus. Além disso, Jonas prediz a destruição de Nínive daí a 40 dias (Jn 3, 4), tempo suficiente para que mudem de vida; e Jesus jejua durante 40 dias (Mt 4, 2; Mc 1, 13; Lc 4, 2), preparando a sua passagem à vida pública. Na sua condição de ressuscitado, aparece aos discípulos durante 40 dias (cfr. At 1, 3) e assim os prepara para a missão que lhes confia (Lc 24, 47-48; At 1, 8).
Quando se refere que Jesus escolheu 70 (ou 72) discípulos para os enviar aonde Ele havia de ir (Lc 10, 1), está-se a usar também um número simbólico, afirmando a universalidade (segundo Gn 10, são 70 [na versão hebraica] ou 72 [na versão grega] os povos do mundo) e sugerindo que é vontade de Jesus que a sua mensagem chegue a todos os povos.
E o que pretenderá dizer João, quando refere que os apóstolos obtiveram 153 grandes peixes, numa pesca milagrosa (21, 11)? Tendo em conta que a barca é símbolo da Igreja, a pesca da atividade missionária e 153 eram as espécies de peixes que os pescadores da antiguidade pensavam existir no mar, então João estará a sugerir que Jesus veio salvar todas as nações, raças e povos do mundo2.
O número 666, em Ap 13, 18, pode ser lido em perspetiva simbólica ou gemátrica. No primeiro caso, remete para a perfeita (o mesmo número repetido três vezes) imperfeição (o número 6). No segundo caso, até porque o texto afirma que “é um número de homem”, parece estar a apontar para Nero César. De facto, se escrevermos este nome em hebraico, obteremos essa quantia: N (50) + R (200) + W (6) + N (50) + Q (100) + S (60) + R (200) = 6663.
Também o número 1000 assume, na Escritura, um significado muito denso, apontando para uma multidão, uma grande quantidade e até o tempo longo do reinado de Cristo. Dn 5, 1 diz que o rei Baltasar deu uma grande festa com 1000 convidados; Salomão ofereceu 1000 vítimas em sacrifício, em Guibeon (cfr. 1 Rs 3, 4). Este número entra na composição dos que, no fim do mundo, se salvarão: 144.000 (Ap 7, 4; 14, 1)4. Se Ap 7 aponta para os descendentes das tribos de Israel, Ap 14 parece ser mais abrangente. Tratar-se-á, então, da combinação de 12 (os eleitos do AT) x 12 (os eleitos do NT) x 1000 (grande quantidade), indiciando a plenitude do povo de Deus, tanto do Antigo como do Novo Testamento, e apontando para a totalidade completa e perfeita dos que pertencem a Deus.
Para concluir, uma referência breve aos números parciais, com os quais o autor do Apocalipse procura sugerir o poder limitado das forças antagónicas a Deus, ao Cordeiro e aos seus seguidores5. Se, por vezes, usa a expressão “a terça parte de” (Ap 8, 7-12; 9, 15.18; 12, 4), as mais frequentes são as que se referem a 3, 5 (metade de sete): “três anos e meio” (Ap 12, 14), “quarenta e dois meses” (Ap 11, 2), e “mil duzentos e sessenta dias” (Ap 11, 3; 12, 6)6.
1 Ariel Álvarez Valdés, Que sabemos da Bíblia?, III (Apelação: Paulus, 1998), 17.
2 Para Santo Agostinho, 153 será o número completo dos salvos, significando a totalidade dos que pertencem à Igreja. Partindo do facto de a soma dos números, de 1 a 17, dá esse valor, observa que 17 é composto de 10 (representação da Lei, os Dez Mandamentos) e 7 (os dons do Espírito ou o número da perfeição espiritual), sugerindo a combinação da Lei e da Graça. No facto de não rasgarem a rede, viu Agostinho o simbolismo de uma Igreja capaz de acolher multidões sem se romper, unindo a diversidade na unidade da fé (cfr. In Iohannis Evangelium Tratactus, tratado 112).
3 Algo de semelhante parece acontecer com o número 318, de Gn 14, 14. Num sentido mais literal e teológico, o texto parece sugerir que, com a ajuda divina, um pequeno exército é capaz de derrotar um outro imensamente maior. Porém, numa leitura gemátrica, este número leva-nos ao servo de Abraão, Eliézer de Damasco (Gn 15, 2): E (1) + L (30) + I (10) + E (70) + Z (7) + R (200) = 318. O mesmo poderemos dizer do número 603.550 (Nm 1, 46), que parece sugerir “todos os filhos de Israel” (em hebraico, rs kl bny ysr’l). De facto, a substituição das letras hebraicas pelos correspondentes valores numéricos dá precisamente 603.550.
4 Alguns grupos (como as Testemunhas de Jeová) interpretam o número de forma literal, mas a tradição cristã católica, ortodoxa e a maioria das tradições protestantes reconhecem o sentido simbólico e universal do número. Aliás, em Ap 7, logo após mencionar os 144.000 (v. 4), João vê “uma multidão enorme que ninguém podia contar, de todas as tribos, línguas, povos e nações” (v. 9), sugerindo que a salvação não se restringe a um número fixo, mas é oferecida a todos.
5 Sugerir que este poder é limitado é uma boa forma de transmitir esperança a quem se encontra na difícil situação da perseguição. É dizer que vale a pena ser fiel, porque a perseguição terá fim.
6 42 meses e 1260 dias são três anos e meio.