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A discussão constitucional

Durante cinquenta anos a discussão sobre a Constituição portuguesa foi praticamente um assunto privativo do PS e do PSD. Sendo os partidos dominantes do nosso sistema político, só eles possuíam em conjunto os dois terços necessários para promover qualquer alteração ao texto constitucional. Podia-se gostar ou não da realidade, mas ela limitava-se a revelar a vontade amplamente maioritária dos portugueses que votavam nas eleições legislativas. Mas também durante quase cinquenta anos muitos sectores da sociedade, lamentaram que não fosse possível termos uma Constituição diferente. Defendiam que ela fosse abrangente sem ser impositiva, que expressasse de forma inequívoca os valores humanistas e democráticos sem estar prisioneira de nenhuma ideologia, que fosse o suporte de uma sociedade aberta sem prescindir da defesa do interesse nacional. 

É verdade, não há que escondê-lo, que esses sectores sempre se situaram e apresentaram na direita, sem contudo quererem ou proporem que as suas ideias concretas sobre as mais diversas áreas da sociedade figurassem na Constituição. No seu entendimento, o debate e a opção por essas ideias deveria estar fora do texto constitucional permitindo assim aos eleitores uma liberdade de escolha sobre o caminho a seguir. Também no seu entendimento, uma Constituição que não fosse ela própria um programa de governo permitiria uma maior transparência da parte dos partidos quanto às suas reais intenções e principalmente quanto à sua capacidade de execução das propostas apresentadas. Se assim fosse, a Constituição não seria desculpa nem alibi para a ineficácia ou até falta de coragem reformadora. 

Porém isso quase nunca foi possível e o imobilismo da Constituição foi garantindo o imobilismo de um sistema programado para assegurar o rotativismo da terceira República. Na realidade, salvaguardadas as duas primeiras revisões constitucionais, em 1982 e 1989, em que de facto PS e PSD convergiram num impulso libertador e vieram ao encontro do que o CDS desde a sua fundação defendia, as mais profundas reformas constitucionais foram determinadas por condicionantes da política europeia a que Portugal tinha aderido. Não poderia aliás ter sido de outra forma, porque, como foi dito anteriormente, a direita só podia fazer o que a esquerda, leia-se o PS, deixava fazer. E essa direita, a maioria da qual votava útil no PSD, foi assistindo apesar da resiliente persistência do CDS que desde o seu voto contra a Constituição, em 1976, nunca desistiu de a alterar. Podem alguns não ter disso memória, podem outros querer esquecê-la, podem até alguns querer ter inéditos direitos de autoria, mas na verdade, ao longo de muitos e muitos anos, o partido mais inconformado e mais impulsionador da revisão constitucional foi o CDS, desde 1993 CDS-PP. 

Aqui chegados, depois de encontros e seguramente de muitos desencontros, há hoje, queira-se ou não, uma nova realidade parlamentar. À direita do PS, pela primeira vez desde 1975, há uma maioria de dois terços que pode mudar a Constituição sem ter de pedir licença aos que estão à sua esquerda. E essa nova realidade é também um imenso desafio. Um desafio para a AD e principalmente para cada um dos partidos que a integram, o PSD e o CDS-PP. Cabe-lhes decidir. Ou lideram a mudança ou se encolhem e encostam aprisionados por declarações vagas e «nãos» desligados dos tempos novos e incompreensíveis para a maioria dos que, como eu, em si votaram nas últimas eleições legislativas. Do que se trata agora não é o de fazer uma revisão constitucional contra ninguém, mas apenas de dar, finalmente, o passo necessário para corrigir erros que persistem e que não fazem sentido continuar. Devemos querer uma Constituição que deixe a democracia respirar, que permita aos governos governar de acordo com os seus programas, e que saiba garantir os princípios fundamentais de identidade comum. Uma Constituição, em suma, que não seja nem da direita nem da esquerda, que seja a Constituição de e para Portugal independentemente de quem governa, independentemente de quem está na maioria ou na minoria. 

Pode isso suceder? Pode. Como? Se uma parte da direita, não tiver medo de o ser!


 

(Nota final: ao longo de praticamente um ano tive a honra de partilhar este espaço com o Dr. José Luis Carneiro. Por razões compreensíveis ele está agora impossibilitado de continuar com o diálogo que mantivemos no Diário do Minho. Resta-me agora cumprimentá-lo e, apesar de não ser socialista, desejar que se mantenha sempre igual ao que é: uma pessoa de Bem).

Manuel Monteiro

Manuel Monteiro

6 junho 2025