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No Segundo Século não havia devoção a Maria

Eis um mito que requer especial cuidado na sua refutação. Não por no séc. II não se falar de Maria (pois é certo que se falava), mas por isso surgir, no âmbito da “Grande Igreja”, mais em contexto teológico do que devocional. Em contexto devocional, o mais explícito que achámos foram fontes provindas de movimentos que nos são (pelo menos em parte) desconhecidos.

Face a estes considerandos, esclareça-se que se há tais referências teológicas na “Grande Igreja” é porque provavelmente tenha havido (antes, em simultâneo e depois) alguma forma de devoção a Maria na dita Igreja. Uma devoção com ideias análogas às presentes em fontes extra-canónicas e que marcaram, como veremos mais adiante, a devoção ortodoxa.

Pois bem, logo no começo do séc. II, Inácio de Antioquia professa, nas suas cartas, a crença na virgindade de Maria na conceção de Jesus e no parto do Mesmo. Maria chega mesmo a ser, para este autor, um “fio de prumo” da fé cristã. Estas ideias são desenvolvidas na obra “Odes de Salomão” – coleção de hinos judeo-cristãos de meados do mesmo século –, na qual encontramos, pela primeira vez e em âmbito devocional, a ideia de que Maria não padeceu dores aquando da ocorrência do parto de Jesus.

Ainda no âmbito teológico, mas numa difusa conexão com uma devoção que ia fabricando uma ponte entre os dois autores de quem irei falar na continuação, temos Justino de Siquém (meados deste século segundo) e Ireneu de Lyon (finais do mesmo século) a falarem de um paralelismo inverso entre Eva e Maria. A saber: se por pressa, orgulho e desobediência a virgem Eva introduziu o pecado no Mundo, já Maria-virgem abriu – por paciência, humildade e obediência – as portas para que a Salvação em Pessoa (Jesus) estivesse humanamente presente entre nós, tornando-se, assim, “advogada” (de defesa e talvez “intercessora”) de Eva.

Os primeiros vestígios mais sólidos de devoção a Maria estão presentes numa biografia parcial da mãe do Salvador, datada do final do século segundo. O seu mais antigo título é o de “Proto-Evangelho de Tiago” e o mais recente (e correto) é o de “Do Nascimento da Virgem” (pois, na verdade, ela trata da vida milagrosa de Maria, e das suas virtudes sobrenaturais, até ao nascimento de Jesus).

Refira-se que a mencionada obra é um texto apócrifo (isto é, um cujo teor não é reconhecido como plenamente verdadeiro pela “Grande Igreja”), mas o seu influxo foi imenso na tradição e até na Tradição – inclusive a litúrgica. De facto, esta obra (a qual lançou firmes bases para a reverência, a veneração e a piedade a Maria) pertence a um grupo de textos da Igreja que, juntamente com outros tipos de textos não-bíblicos, foram estimados como possuindo alguma autoridade no seio eclesial, tendo-se a mesma tornado um valioso “anexo” aos textos cristãos que se iam consolidando como parte do que virá a ser conhecido como “Novo Testamento”.

A aduzida importância vê-se, nomeadamente, no facto de que o seu conteúdo (a cingir a pureza sagrada de Maria) tornou-se norma, em parte, do que ainda hoje o Catolicismo e as confissões cristãs do oriente Cristão dizem acerca: dos pais de Maria; da sua conceção e nascimento; da sua infância no Templo; e, enfim, do parto de Deus-Filho incarnado. E isto tudo desde uma matriz de cunho já nuclearmente devocional acerca de Maria.

Alexandre Freire Duarte

Alexandre Freire Duarte

4 junho 2025