1. Um amigo convidou-me para um café e, entre um gole e outro, disse-me que estranhava que, após evocar o poeta estadunidense Walt Whitman, os autores d’O Federalista (Alexander Hamilton, James Madison e John Jay) e a filósofa Hannah Arendt, me tenha esquecido de Alexis Tocqueville, o célebre autor Da Democracia na América. Retorqui-lhe que já havia dedicado, no início do ano, três artigos com o título desse importante livro (1835-1840); porém, dada a proficuidade da obra, prometi-lhe uma nova reflexão, fazendo jus quer ao filósofo Wilhelm Dilthey (1833-1911), que considerava Tocqueville "o maior pensador político desde Aristóteles e Maquiavel", quer a Raymond Aron (1905-1983), que, inspirando-se nele, realça como Alexis valorizava, nas sociedades, o factor democrático.
2. Descrevendo a novel Nação americana, Alexis receava o perigo do despotismo das maiorias, que, no Novo Mundo, era coarctado pelo florescimento de instituições políticas concretas, ligado à descentralização administrativa: "aí a sociedade age por si e sobre si própria. Não existe poder, senão em seu seio; (…). O povo participa da composição das leis pela escolha dos legisladores, na sua aplicação pela eleição dos agentes do poder executivo; pode dizer-se que ele mesmo governa, tão frágil e restrita é a parte deixada à administração, tanto esta se ressente da sua origem popular e obedece ao poder de que emana. O povo reina sobre o mundo político americano como Deus sobre o universo. É ele a causa e o fim de todas as coisas; tudo sai e tudo se absorve nele." (I, I, IV: 97). Nessa novel Nação, Tocqueville pressente um novo tipo de patriotismo em acção: "a pátria faz-se sentir em todo o lado. Ela é um objecto de solicitude desde a vila até à União inteira. O habitante sente-se ligado a cada um dos interesses do seu país como se fosse o seu próprio. Orgulha-se da glória da nação: nos seus sucessos julga reconhecer a sua própria obra e isso enaltece-o; regozija-se pela prosperidade geral da qual é beneficiário, nutre pela pátria um sentimento análogo àquele que sente pela sua família" (I, I, V: 135). Dalgum modo, na era de Trump, os EUA são hoje o inverso do que já foram!
3. Acresce que "a América é o país do Mundo no qual se tirou partido da associação e onde se aplicou este poderoso meio de acção a uma diversidade de usos" (I, II, IV: 235). E elucida: "os Americanos de todas as idades, condições e tendências reúnem-se constantemente, não só em associações comerciais e industriais, nas quais todos participam, mas também em muitas outras de diversíssimos géneros: religiosas, morais, sérias, fúteis, muito gerais e muito particulares, enormes e ínfimas; os Americanos associam-se para dar festas, fundar seminários, construir albergues, erguer igrejas, divulgar livros, enviar missionários para os antípodas; e é também assim que criam hospitais, prisões e escolas." (II, II, V: 601)
Segundo o historiador Furet, o que conferiu à revolução dos EUA a sua excepcionalidade, foi, comparada com a da Inglaterra, ter sido uma revolução democrática radical; com a da França, uma democracia radicalmente não revolucionária. De facto, aí a democracia é a seiva: "há três factores que, mais do que todos os outros, parecem contribuir para a conservação da república democrática do Novo Mundo"; o 1º, "é a forma federal adoptada pelos americanos, que permite à União usufruir tanto do poder de uma grande república como da segurança de uma pequena"; o 2º, "encontro-o nas instituições das comunidades locais, que, moderando o despotismo da maioria, inculcam no povo o gosto pela liberdade e, ao mesmo tempo, a arte de ser livre"; o 3º, "reside na constituição do poder judicial", e já "mostrei como os tribunais (…) sem nunca poder deter os movimentos da maioria, conseguem, contudo, abrandá-los e orientá-los" (I, II, IX: 337) – que hoje Trump quer destruir.
4. Por isso, "nas sociedades democráticas, a maioria dos cidadãos não vê claramente o que poderia ganhar com uma revolução e sente constantemente, de mil maneiras diferentes, o que teria a perder com ela" (II, III, XXI: 769). Todavia, para Tocqueville, se o maior benefício da democracia foi a igualdade perante a lei, tipificou um novo tipo de tirania que pode subjugar minorias e indivíduos; e era grande a sua tormenta com a possibilidade de a democracia ser o seu próprio algoz, por um excessivo peso dado ao poder maioritário; porventura, nenhum outro texto de Tocqueville supera em impacto esse capítulo VII, em que antecipa o que neste século pode ser um novo modo de totalitarismo: "O que mais censuro no governo democrático, tal como foi organizado nos Estados Unidos, não é, como muitos na Europa o pretendem, a sua fraqueza, mas, ao contrário, a sua força irresistível. E o que me repugna mais na América, não é a extrema liberdade que lá reina, mas as poucas garantias que aí encontramos contra a tirania" (I, II, VII: 301). Em 2025, com Trump, temos a prova dessa antevisão.