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Eu só sei fazer assim

Às vezes penso na velhice. Se durar, hei-de chegar lá. Tenho sorte que ela hoje chegue mais tarde, o que me dá tempo para decidir um ou outro aspecto. Mas, nada que me deixe totalmente descansado. O mais importante eu não consigo resolver. Vou sabendo do que se lá passa. Nunca é como passar o resto dos dias no seio da Família, ainda que nos dias que correm não seja como antigamente. Os elementos do agregado familiar, quando os há, trabalham e têm as suas vidas. E têm objectivos que não se coadunam com os nossos. A vida já não é como era. E quando não há filhos, como é o nosso caso aqui em casa, tudo se torna mais difícil, mais inevitável parece ser o recurso a um lar no outono da vida. Pode ser que tenhamos sorte, que a doença não nos incapacite muito antes da despedida e possamos ser velhos independentes até morrer, mas pode ser que não. E como não temos a Eva Maria e o Luís António para nos valer – talvez eles tivessem filhos, trabalhos e objectivos de vida e não tivessem também disponibilidade para nos aturar –, o mais certo é termos de deixar a nossa casa algum dia para ir viver o tempo que nos restar num qualquer lar. Pode não ser um qualquer, que já estamos a fazer para que não seja assim. Nunca será como dantes, que se saía de casa para a última morada, ainda que se tivesse de passar primeiro por um hospital. Hoje, quase nunca se sai de casa. Sai-se de uma morgue, vestidos por alguém da funerária. Não se volta a casa, que é o lar, antes do cortejo em que já não se participa, mas em que o homenageado avalia o número de amigos e seguidores, como agora se diz.

 

Dantes não havia destas organizações sociais para onde os idosos agora podem ir passar o resto dos seus dias. É uma das inevitabilidades dos novos tempos, uma solução com muitas vantagens, mas a maior parte das vezes uma solução de recurso. Não há como um lar a sério, de verdade. Tenho algum medo do momento em que isso se tornará realidade para mim. Tenho pena de não ter filhos. É verdade, tenho sobrinhos e sobrinhas, mas esses têm um emprego, precisam desse emprego, e têm filhos para cuidar. E têm certamente também objectivos de vida que perseguem e que querem atingir. Disse atrás que tinha algum medo, mas, na verdade, tenho mesmo muito medo. Hoje sinto-o. No sábado passado, ao almoço, num dos restaurantes que se abrem nesta altura para acolher os famintos romanos por alguns dias, escutei o que sabia e não sabia, abri o coração e deixei transparecer o meu medo. Confirmei o que já pensava, o que já tinha visto. Um lar não é um lar, por melhores serviços que possam constar no cardápio de uma instituição credenciada. Infelizmente, há os que não oferecem condições mínimas de segurança para os utentes – de quando em vez os telejornais e os jornais impressos abrem com notícias destes estabelecimentos ilegais – e há também aqueles que têm certificado, mas estão longe de se parecerem a lares. Certamente que os haverá de referência.


 

Tenho medo de cair num lar, ainda que seja daqueles bem cotados. Pode-me acontecer das condições que me forem concedidas não serem as que constam do cardápio e muito menos das que forem apregoadas na altura da reserva. Tenho medo de um dia chegar à noite e ter de pedir ”um chãzinho e umas bolachas por não ter chegado o jantar para todos”. Tenho medo de vir a parecer um palhacinho, se me vestirem uma roupa qualquer, a despropósito e sem gosto. Tenho medo que me tratem como uma mercadoria e não como uma pessoa. Tenho medo que as auxiliares ou técnicas não tenham jeito, sensibilidade, ou que se lhes sejam impostos “métricas e tempos” para tratar de cada um que tenham a cargo. Quando chegar o meu ocaso, gostava de ser cuidado por alguém, embora fosse num lar institucional, que não estivesse condicionado por interesses mercantilistas e me pudesse dizer: “trato-os como se fossem o meu Pai. Eu só sei fazer assim”. Ver é mais do que olhar e ser dirigente de uma instituição deve ir além de procurar o equilíbrio das contas e de construir um e mais outro novo lar. Como eu, deve haver muitos outros com medo.

Luís Martins

Luís Martins

27 maio 2025