Publicada pelo Papa Leão XIII, em 15 de maio de 1891, a encíclica Rerum Novarum (“Das coisas novas”) fez, na passada quinta-feira, 134 anos. Não se tratando de uma data redonda, por que motivo o destaque dado hoje a este documento? E não será difícil descobri-lo se tivermos em conta a explicação que, numa audiência com os Cardeais, no Vaticano, dois dias depois da eleição, o Papa deu acerca do nome que para si escolhera: “Na verdade, são várias as razões, mas a principal é que o Papa Leão XIII, com a sua encíclica histórica Rerum Novarum, tratou da questão social no contexto da Revolução Industrial; e hoje a Igreja oferece a todos a riqueza de sua doutrina social para responder a outra revolução industrial, especialmente aos desafios trazidos pela inteligência artificial, que afeta a dignidade humana, a justiça e o trabalho”.
Foi esta escolha do Papa que trouxe para a ribalta o documento fundador da Doutrina Social da Igreja e inspirador de outras encíclicas sociais: a Quadragesimo Anno (Pio XI, 15 de maio de 1931), a Populorum Progressio (Paulo VI, 26 de março de 1967) e a Centesimus Annus (João Paulo II, 1 de maio de 1991).
Com o subtítulo “A condição dos operários”, a Rerum Novarum teve como contexto as transformações sociais e económicas do séc. XIX, no âmbito da Revolução Industrial: o desenvolvimento da indústria, o capitalismo liberal, a exploração dos trabalhadores e o surgimento do socialismo. Eram tantas as novidades que, em boa hora, o Papa Leão XIII resolveu refletir sobre o assunto e oferecer à Igreja e ao mundo um documento inspirado e inspirador sobre o mundo do trabalho e das temáticas que lhe dizem respeito.
A encíclica defende o direito ao trabalho justo, à remuneração suficiente e à formação de sindicatos; pugna por jornadas de trabalho moderadas e pelo descanso semanal, ao mesmo tempo que condena a exploração dos operários. Insiste muito na propriedade privada, afirmando-a como um direito natural, a ser usado com responsabilidade e, por isso, condena a concentração abusiva de riquezas, assim como o socialismo radical: a “conversão da propriedade particular em propriedade coletiva, tão preconizada pelo socialismo, não teria outro efeito senão tornar a situação dos operários mais precária, retirando-lhes a livre disposição do seu salário e roubando-lhes, por isso mesmo, toda a esperança e toda a possibilidade de engrandecerem o seu património e melhorarem a sua situação” (nº 4).
Num tempo em que o comunismo ou socialismo radical propunha a luta de classes, a Rerum Novarum advoga a concórdia entre a classe patronal e a classe operária: “elas têm imperiosa necessidade uma da outra: não pode haver capital sem trabalho, nem trabalho sem capital” (nº 9). Essa concórdia “traz consigo a ordem e a beleza; ao contrário, dum conflito perpétuo só podem resultar confusão e lutas selvagens” (nº 9).
Aos patrões, pede o Papa Leão XIII que tratem os trabalhadores com justiça e dignidade, pagando-lhes um salário conveniente. Por sua vez, sugere aos trabalhadores que cumpram as suas tarefas com dedicação e honestidade (nº 10). E afirma mesmo que só a articulação e o entendimento entre as classes gera progresso e paz social.
No que tange às obrigações do Estado, sem deixar de referir os limites da sua intervenção (nº 20), a encíclica adianta que deve proteger a propriedade particular (nº 21), impedir o abuso da greve (nº 22), proteger os bens da alma (nºs 23, 24, 25 e 26), defender os mais débeis e promover o bem comum. Intervindo moderadamente, cabe-lhe garantir a justiça social, sem sufocar a iniciativa privada; proteger os direitos dos pobres, fomentar a harmonia entre as classes e manter a ordem social.
A Rerum Novarum afirma que a justiça social não se limita às leis e acrescenta que é necessário promover as associações operárias católicas (nº 32 e 33), deixando mesmo um convite explícito a que os operários católicos se associem (nº 34). Por fim, apela à caridade, à solidariedade e ao amor ao próximo, afirmando que a Igreja tem um papel essencial na formação moral e espiritual da sociedade: “Façam os governantes uso da autoridade protetora das leis e das instituições; lembrem-se os ricos e os patrões dos seus deveres; tratem os operários, cuja sorte está em jogo, dos seus interesses pelas vias legítimas; e, visto que só a religião (...) é capaz de arrancar o mal pela raiz, lembrem-se todos de que a primeira coisa a fazer é a restauração dos costumes cristãos, sem os quais os meios maiz eficazes sugeridos pela prudência humana serão pouco aptos para produzir salutares resultados. Quanto à Igreja, a sua ação jamais faltará por qualquer modo, e será tanto mais fecunda, quanto mais livremente se possa desenvolver” (nº 35).
A (re)leitura da Rerum Novarum não deixa ninguém indiferente e gera, desde logo, a ideia de que não só a Igreja foi pioneira na reflexão sobre as questões laborais e sociais, como continua a sê-lo, dada a enorme atualidade de um texto com mais de cem anos. E o Papa Leão XIV percebeu-o e disse-o, de forma simples, mas incisiva. A Doutrina Social da Igreja ganha uma nova voz, num tempo que tende a esquecê-la ou, pelo menos, a relativizá-la.