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Votar por obrigação

Evidentemente que vou votar no próximo domingo, mas por obrigação, sem vontade, sem prazer, sem esperança, cumprindo apenas o ritual de um mero dever cívico. E porquê?

Em primeiro lugar, porque, tal como uma enormíssima parte dos eleitores, entendo que não era desejável e muito menos necessária a realização de eleições legislativas, apenas tornadas inevitáveis pela rejeição de uma moção de confiança, perfeitamente dispensável, só explicável por lamentáveis interesses políticos e pessoais do primeiro-ministro e do líder do maior partido da oposição e das respectivas direcções partidárias que tive já a oportunidade de escalpelizar em recente crónica (de 20/03/2025).

Depois, porque estou persuadido que o quadro partidário a sair destas eleições não vai alterar substancialmente a correlação das forças entre os concorrentes e, sobretudo, não vai conferir a maioria a nenhum partido ou coligação, pré ou pós-eleitoral.

E, em terceiro lugar, por uma causa recorrente que se prende com o vigente sistema eleitoral e com a (restrita) representatividade democrática que o mesmo proporciona.

Conforme é consabido, em Portugal, o modelo adoptado desde o 25 de Abril é o da representação proporcional, com círculos eleitorais distritais e listas fechadas e bloqueadas que impedem os eleitores de escolher directamente os candidatos que pretendem eleger nos seus círculos ou sequer ordená-los por seu livre alvedrio, deixando essa escolha e essa selecção, exclusivamente, nas mãos das direcções partidárias. E isso é censurável porque compromete, desde logo, um princípio eleitoral fundamental – o da proximidade entre eleitores e eleitos.

Teoricamente, os eleitores são chamados a eleger deputados que os representem na Assembleia da República (AR), entre pessoas que bem conheçam ou melhor possam conhecer e a quem possam pedir responsabilidades directamente. Porém, não é isso que sucede: a única opção dos eleitores é referendar uma escolha feita pelos directórios partidários, quase sempre à margem da vontade das próprias bases – habitualmente arredadas da selecção dos cabeças de listas e dos segundo e terceiro candidatos – e tantas e tantas vezes à margem do mérito individual dos candidatos, privilegiando ou premiando antes a sua fidelidade ou influência na máquina partidária.

A esta fragilidade do sistema acresce uma outra que, não sendo de menor gravidade, inquina um outro princípio elementar que deve reger o direito eleitoral – o da igualdade do valor do voto – e que enfraquece a legitimidade democrática do regime: a inexistência de um círculo nacional de compensação que corrija a ineficácia de milhares de votos expressos em partidos que não atingem o limite necessário para eleger representantes em determinados círculos distritais, sobretudo nos de menor dimensão. E isto apesar de, na sua actual redacção, a Constituição da República Portuguesa prever a possibilidade da introdução legal de tal mecanismo, à semelhança, aliás, do regime instituído noutras democracias europeias.

Eis um exemplo de como uma singela medida legislativa – criação de um círculo nacional de apuramento – poderia corrigir a sub-representação de forças políticas minoritárias, aportando mais pluralidade, mais proporcionalidade e mais representatividade ao Parlamento e garantindo, assim, que cada voto deve ter o mesmo valor.

Por último, mas não menos importante, quero referir-me a um factor que, a meu ver, tem contribuído para a erosão do sistema parlamentar português: a governamentalização do regime que, cada vez mais, converte as eleições legislativas num processo que cada vez menos visa a escolha de deputados e mais a eleição do primeiro-ministro.

Realmente, a prática política entre nós prosseguida nos últimos cinquenta anos tem revelado uma tendência crescente para a concentração do poder político no Governo, em desfavor da AR, que o saudoso Prof.º Adriano Moreira tão bem notou e criticou, usando a expressão “governo de chanceler” para caracterizar tal evolução do regime nacional.

Como argutamente notou este ilustre político e académico, ao invés de ser o Parlamento o grande autor da produção legislativa e da decisão política, foi o Executivo quem vem afirmando a sua crescente intervenção nessa função e controlando a agenda parlamentar, quer por via das maiorias governamentais, quer por meio da disciplina de voto dos deputados, imposta pelas lideranças partidárias.

De facto, tanto através de decretos-lei e de regulamentos, como usando e abusando do seu poder de influência junto do partido ou partidos que o suportam, os sucessivos Governos têm vindo progressivamente a subalternizar as funções essenciais do órgão legislativo por excelência, à semelhança do “modelo alemão do Kanzlerdemokratie (governo do chanceler)”.

Ora, uma tal prática esvazia gradualmente a função representativa essencial da AR e, consequentemente, tende a afastar os cidadãos do processo de decisão política. E, por conseguinte, é lógico que as eleições legislativas se vão tornando cada vez mais uma escolha do primeiro-ministro e não dos representantes do povo no Parlamento.

E se dúvidas houvesse – e não há –, basta assistir à campanha eleitoral para ver que a mesma é quase exclusivamente centrada nas pessoas dos presidentes dos partidos concorrentes, enquanto potenciais candidatos a primeiro-ministro.

Pelo que venho de expor, entendo que é tempo de repensar o modelo eleitoral no que às legislativas diz respeito, em termos de revitalizar o regime democrático e de garantir o efectivo equilíbrio e representatividade dos poderes do Estado.

Sei que para tal tem minguado vontade política dos dois maiores partidos políticos nacionais, afinal os principais beneficiários do actual sistema. Mas, por isso mesmo, se impõe que a sociedade civil contribua para romper essa “lógica de autopreservação do poder partidário”, reivindicando quanto antes as mudanças necessárias, por forma a reforçar a legitimidade democrática, a representatividade do Parlamento e a aproximação entre governantes e governados. Será essa uma das melhores formas de celebrar a alegria das primeiras eleições livres e com voto universal, em Portugal – as constituintes de 25 de Abril de 1975 e as legislativas de 25 de Abril de 1976 – que a Revolução dos Cravos em boa hora propiciou.

António Brochado Pedras

António Brochado Pedras

16 maio 2025