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“Quo Vadis America?” (3)

1. Desta vez, a minha fonte de inspiração é a filósofa Hannah Arendt (1906-1975), alemã, que cedo rumou aos Estados Unidos (EUA) com a subida de Hitler ao poder em 1933, dada a sua condição de judia. Antes, porém, em 1922, encetou os estudos em Filosofia e Teologia na Universidade de Berlim, transferiu-se em 1924 para a Universidade de Marburgo onde conheceu Heidegger, depois concluiu em Heidelberg os seus estudos sob a direcção de Karl Jaspers. Com o eclodir da guerra, evade-se dum campo de concentração, rumo a Nova Iorque (Maio 1941), onde foi jornalista e apoiou organizações humanitárias, adquirindo a cidadania americana em 1944, leccionando em várias universidades.


 

2. Da sua vasta obra, incidirei n’As origens do totalitarismo (1951), que dilucida o terror que foram os sistemas totalitários do século XX (nazismo, bolchevismo, fascismo) e é um potente alerta para os nossos dias. O livro (670 páginas) contém uma I Parte sobre o Anti-Semitismo, a II sobre o Imperialismo, a III sobre o Totalitarismo, a que agora me interessa. Ninguém antes havia apreendido a radicalidade tenebrosa do totalitarismo como Hannah: é o domínio total dos humanos, movido pelo lema de que tudo é possível, criando uma das mais terríveis formas de governos que não pode ser comparada com nenhum outro tipo de tirania ou ditadura.

Numa sociedade fragmentada e em crise, muitos são os que se entregam ao isolamento, à apatia política, alheando-se do interesse comum: "Potencialmente, as ‘massas’ existem em qualquer país e constituem a maioria das pessoas neutras e politicamente indiferentes, que nunca se filiam a um partido e raramente exercem o poder de voto" (pág. 413). Foram tais indivíduos atomizados que se tornaram as bases dos movimentos totalitários, na maioria seus adeptos fanáticos, movidos por uma propaganda maciça que cria um falso mundo de coerência, com mentiras que iludem sobre o abismo entre a realidade e a ficção. Nestes movimentos, emerge a figura do Líder, que assume papel de relevo pela aura da infalibilidade que propaga, conquistando a credulidade dos seus seguidores.


 

3. Numa segunda fase, há a consolidação do poder estatal pela administração do Estado, visando o domínio total da população, ao mesmo tempo que se instaura a polícia secreta. Para Arendt, o mais intrigante do Estado totalitário (por ex., no sistema bolchevista) é a "coexistência (ou conflito) de uma dupla autoridade, o partido e o Estado" (523-524), em que o verdadeiro poder está nas mãos do partido; já a conquista do poder pelo nazismo representou a destruição de todas as estruturas de governo existente, com a duplicação dos órgãos de autoridade, deixando o poder real nas mãos do partido e para o Estado um poder de fachada. Neste ínterim, há a "abolição da liberdade, até mesmo à eliminação de toda liberdade humana e não a simples restrição, por mais tirânica que seja" (536). A terceira fase do totalitarismo é a dos campos de concentração, que leva o extermínio humano ao extremo, onde as vítimas desaparecem sem deixar vestígios, com a própria existência apagada, já que os campos funcionam "como laboratórios onde se demonstra a crença fundamental do totalitarismo de que tudo é possível" (580). Então, "o primeiro passo no caminho do domínio total é matar a pessoa jurídica do homem" (592), excluí-la da protecção jurídica através do processo de desnacionalização, colocando-a fora da lei e do sistema penal, quais cadáveres vivos; o segundo, é matar a pessoa moral do indivíduo (garantia da sua identidade única); o terceiro, é o da morte da singularidade individual, abandonando-se os indivíduos ao puro esquecimento de lembranças, de qualquer esperança, da forma pessoal de reagir ao mundo, às experiências, onde não há espaço para a dor e a recordação, e até o direito de ser lembrado lhe é tolhido, qual ser absolutamente supérfluo.


 

4. Assim, "o verdadeiro horror dos campos de concentração e de extermínio reside no facto de os internados, mesmo que consigam manter-se vivos estarem mais isolado do mundo dos vivos do que se tivessem morrido, porque o horror compele ao esquecimento" (586-7). Note-se que "o domínio totalitário como forma de governo é novo no sentido de que não se contenta com esse isolamento e destrói também a vida privada. Baseia-se na solidão, na experiência de não pertencer ao Mundo, que é uma das mais radicais e desesperadas experiências que o Homem pode ter" (629). Eis o terror: "Nos países totalitários, todos os locais de detenção administrados pela polícia constituem verdadeiros poços de esquecimento, onde as pessoas caem por acidente, sem deixar atrás de si os vestígios tão naturais de uma existência anterior, como um cadáver ou uma sepultura" (576).

Numa era de tentações extremistas, eis o alerta de Arendt: "As soluções totalitárias podem muito bem sobreviver à queda dos regimes totalitários sob a forma de forte tentação que surgirá sempre que pareça impossível aliviar a miséria política, social ou económica de um modo digno do homem" (608).

Acílio Estanqueiro Rocha

Acílio Estanqueiro Rocha

10 maio 2025