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No Segundo Século o pensamento doutrinal cristão era caótico

Eis-nos novamente ante um mito doce para os teóricos das conspirações. Mais um mito resultante do polvilhar a azeda mentira com alguma doce verdade. Em concreto: é um facto de que, no séc. II, foram muitas as linhas de pensamento que, então e (ainda) hoje, foram e são consideradas ortodoxas [o açúcar da verdade] que se emaranharam em diversas correntes teológicas que, hoje e (já) então, são e foram tidas como inaceitáveis) [o azedo da mentira].

Tenhamos bem presente que, entre 101 e 200, os pensadores cristãos ainda estavam (e estariam durante muito mais tempo) em busca das melhores conceções, palavras e expressões que fossem capazes de expressar, de um modo doutrinalmente fiel, a Revelação provinda das crescentemente estruturadas Escrituras do Novo Testamento e da Tradição. Neste contexto, muitos foram os autores que, apesar de até terem podido pensar que eram ortodoxos, veicularam ideias que, quando bem analisadas, careciam dessa ortodoxia.

Os exemplos, referentes ao séc. II, de temas correlacionados com o dito anteriormente, são abundantes. Apresentarei apenas alguns deles: as múltiplas teses dos movimentos gnósticos; a relação entre os textos do Antigo Testamento e os que iam formando o Novo Testamento; os modos de readmissão de (ou a recusa em admitir) os cristãos que, em situações de perseguição, haviam cedido às ameaças a si dirigidas; a compreensão da (não-)reiteração do perdão conferido no Batismo; as formas inaceitáveis de se apresentar a relação, em Jesus, da Sua humanidade e da Sua divindade; os modos talqualmente inadmissíveis de se articular o “um só Deus” (o Monoteísmo) com “as três Pessoas Divinas” (a Trindade); a forma como se processaria o “fim do mundo”; etc.

Como se pode constatar, são diversas as temáticas sobre as quais os pensadores cristãos precisaram de se debruçar para analisarem as linhas que nelas transmitiam o que, em muitos aspetos firmemente ancorados, já era a ortodoxia de pensamento da Grande Igreja. Mais: muitos foram os nossos irmãos da fé que pelejaram teologicamente contra teses que não transmitiam a verdade da fé cristã, tal como ela era reconhecida neste período epocal.

Posto isto, se houve essa peleja doutrinal entre quem, por um lado, estava dentro da “circunferência” do pensamento correto e quem, por outro lado, se encontrava fora dessa “circunferência”, é porque, como disse no parágrafo precedente, já havia “faróis” teológicos suficientes para iluminarem um caminho seguro a nível doutrinal. Que tenha havido quem, neste período genuinamente aventureiro, decidiu afastar-se do trilho iluminado foi algo que levou a posições erróneas e, simultaneamente, ao aprofundar e enriquecer da teologia cristã mais sólida (no seio da qual não havia qualquer desordem).

Ou seja: não se pode omitir a realidade que (um pouco como com as seitas cristãs e pseudo-cristãs dos nossos dias) se entendia e expunha a fé cristã com muitos e confusos “fios” de diversas “cores” que formavam um “novelo” com copiosas “colorações”. Mas, e uma vez dito isto, não há qualquer dúvida que já havia a noção de quais desses “fios” eram aceitáveis para uma Grande Igreja que, pouco depois do seu começo (recordemos as quatro versões canónicas do Evangelho), já era una no demarcar da diversidade aceitável (embora não caótica).

Alexandre Freire Duarte

Alexandre Freire Duarte

30 abril 2025