1. No artigo anterior escolhemos como guia de reflexão o poeta Walt Whitman, o maior poeta estadunidense, que Fernando Pessoa tanto admirava. E é dolorosamente que constatamos que a democracia americana acabou por seguir justamente a direcção que Whitman temia, o que o levou a escrever esse ensaio, Visões democráticas (1871), tão negligenciado no seu próprio país, que escreveu certamente como provocação, mas, acima de tudo, como um alerta lúcido.
Trata-se dum gravíssimo desvio dos Estados Unidos (EUA) em relação à sua tradição política, configurada n’O Federalista – hoje nosso guia de reflexão –, a melhor iniciação ao sistema constitucional dos EUA, tanto na sua forma escrita como na sua versão consuetudinária, concebido precisamente para impedir a ascensão de figuras como Trump; e tais mecanismos acabaram por falhar. E assim surgiu, no seio do sistema, um inimigo interno da democracia.
2. A obra O Federalista (The Federalist Papers) é constituída por um conjunto de 85 artigos publicados na imprensa de Nova Iorque em 1788, de autoria de Alexander Hamilton, James Madison e John Jay – sob o pseudónimo de Publius –, cujo escopo era defender a ratificação de uma nova Constituição para os EUA, cuja proposta havia sido elaborada pela Convenção Federal que se reuniu em Filadélfia entre Maio e Setembro de 1787 (para substituir os Artigos da Confederação, firmados em 1781, que constituíram o primeiro documento de Governo desse país). Da obra, temos duas traduções – Edições Colibri e Fundação Calouste Gulbenkian.
Se Hamilton, Madison e Jay mantinham divergências entre si e algumas reservas quanto ao projecto de Constituição debatido, convergiam no sentido de que o seu texto configuraria um ordenamento jurídico muito superior ao vigente na época, motivo pelo qual urgia a sua ratificação, num debate acalorado no qual se discutia os termos de aprovação da nova Constituição pelos treze Estados que compunham a República Confederada; a partir desse momento os EUA passaria a ser estruturado sob os auspícios duma Constituição e não mais de um Tratado. Ao lermos vários desses artigos parece assistirmos a muita controvérsia sobre a União Europeia – se mais poderes à União ou aos Estados-membros –, ainda regida pelo Tratado de Lisboa.
3. A obra estrutura-se assim: a 1.ª secção (n.ºs 1-37), delineia com detalhe os problemas da confederação, seguida por outra secção (38-51) sobre os princípios gerais da Constituição; depois descrevem-se as instâncias do novo poder federal – n.ºs 52-61 sobre a Câmara dos Representantes, 61-65 sobre o Senado, 66-77 relativos à Presidência, 78-83 ao poder judicial federal. E estas seriam as características básicas do novo federalismo: distribuição do poder de governo em dois planos harmónicos, federal e provincial (ou central e local); composição bicameral do poder legislativo (Câmara dos Deputados e Senado Federal); constância dos princípios fundamentais da federação e da República.
Thomas Jefferson (principal autor da Declaração de Independência dos EUA e 3.º Presidente) resume bem toda a arquitectura do sistema: "A concentração de poder nas mesmas mãos é precisamente a definição de governo despótico. Não será nenhum alívio que estes poderes sejam exercidos por uma pluralidade de mãos e não por uma única". Por isso, os freios e contrapesos (checks and balances) são um conjunto de limitações e inspecções, inseridas no sistema norte-americano, que possui a função de restringir o poder governamental e prevenir o seu uso abusivo, mantendo o balanceamento entre os diversos partidos e impedindo que um deles acumule poder em excesso.
4. Hamilton alude, no n.º 9, a inovações nessa direcção: "A distribuição correcta do poder entre os diferentes departamentos, a introdução de balanços e controlos legislativos, a instituição de tribunais compostos por juízes que detêm os seus cargos enquanto bem cumprirem, a representação do povo na legislatura por deputados que ele próprio elegeu". Também Madison se refere ao tema, no nº 45: "Os poderes delegados ao Governo Federal pela Constituição proposta são poucos e definidos; os que irão permanecer nos governos dos Estados são numerosos e indefinidos. Os primeiros serão exercidos principalmente sobre tópicos externos, como a guerra, a paz, a negociação e comércio exterior, com o qual o poder de tributação estará, na sua maior parte, ligado. Os poderes reservados aos Estados-membros estender-se-ão a todos os tópicos que, no curso normal das coisas, dizem respeito à vida, liberdade, e propriedade do povo, e à ordem interna, desenvolvimento, e prosperidade do Estado".
Ora, a enxurrada de ordens executivas assinadas por Trump, as interferências no poder judicial, a insurreição por invasão do Capitólio no 1º mandato (delito não punido), as intromissões nas universidades, empresas, agências, a violação dos direitos e garantias das pessoas, etc., ao contrário do consignado n’O Federalista, fazem antever uma autocracia nos EUA.
O autor não segue o denominado “acordo ortográfico”