É difícil acreditar, mas aconteceu. A Embaixada dos EUA teve a distinta lata de enviar um inquérito às empresas portuguesas fornecedoras de serviços e às universidades sobre políticas de inclusão, de género, de relações institucionais, etc.etc. São tão surpreendentes, inauditas e profundamente angustiantes que a primeira reação que tive foi de perplexidade e de incredulidade. A segunda reação foi perceber que os empresários reagiram com espanto, mas receosos por perderem o negócio, falaram baixinho e quase ninguém os ouviu e, a fazer fé, no que escreveu ontem Pacheco Pereira, no jornal Público, parece que para alguns deles, princípios e valores não existem no dicionário empresarial e terão respondido, ao invés de pedirem apoio, ou fazerem aquilo que fizeram as universidades lusas: não responderam. A terceira reação foi olhar para isto e ver um Governo a anunciar 10 mil milhões de apoio aos empresários e nem um euro para lhes dizer: se os ameaçarem com a paragem da prestação dos serviços, o governo apoia-vos. Ora, não foi isso que aconteceu e também não aconteceu o que seria óbvio: uma reação indignada do governo e uma chamada do embaixador dos Estados Unidos ao Palácio das Necessidades para lhe manifestar que o governo português não admite nem aceita este tipo de questionários e que as políticas que moldam as obrigações empresariais e o mundo universitário, não são escrutináveis nem são sujeitas a avaliação prévia de censura por parte de outro governo. Infelizmente, não foi apenas o Governo português a ficar em silêncio, a Comissão europeia nada disse até hoje e, ao que se sabe até agora, o assunto ainda não foi abordado a ponto de se perceber se há ou não uma preocupação concreta com o maior desafio que está a ser colocado à nossa Democracia por um autocrata chamado Donald Trump que, já se percebeu, está a seguir rapidamente, as pisadas de regimes como o russo, o húngaro ou o bielorusso. A primeira ideia, pouco radical, que me surgiu como resposta , cordial, diga-se de passagem, é enviar ao senhor embaixador dos EUA, em Portugal, John Arrigo, a nossa simpática e criativa peça de artesanato desse grande artesão português, nascido nas Caldas da Rainha, Bordalo Pinheiro, que a propósito da miséria em que viviam os portugueses, há cerca de 150 anos (1875) não teve com meias medidas de fazer um manguito ao então ministro da Fazenda, Serpa Pimentel. Reza a Wikipédia, em resumo, a devida circunstância: “ Surgiu pela primeira vez na 5.ª edição do periódico "A Lanterna Mágica", a 12 de Junho de 1875, na caricatura intitulada "Calendário 'Portuguez'", alusiva aos impostos, onde se representa o então Ministro da Fazenda, Serpa Pimentel, a sacar ao Zé Povinho uma esmola de três tostões para Santo António de Lisboa (representado por Fontes Pereira de Melo) com o "menino" (D. Luís I) ao colo, tendo ao lado o comandante da Guarda Municipal, de chicote na mão, presente para prevenir uma eventual resistência.” Coincidência: Troquem-se os impostos por tarifas, as personagens por Trump e Vence e o comandante municipal por quem persegue quem critica ou não concorda com a política do governo americano e temos um desenho que merece e justifica o envio da famosa peça de artesanato à embaixada. Haja ou não quem o queira fazer, não podemos é enfiar a cabeça na areia ou assobiar para o lado. Sei e tenho a noção de quanto vale a diplomacia, mas a diplomacia também sabe quanto custa preservar os princípios e os valores em Democracia. Como respondi uma vez a um ex-jornalista, indigno desse nome: “podem não dar de comer, mas alimentam a alma”. Mais do que isso, só o que o próprio Bordalo Pinheiro escreveu para definir a sua personagem Zé Povinho e que não podemos alimentar nos dias que correm: “"O Zé Povinho olha para um lado e para o outro e… fica como sempre… na mesma". Entretanto, apesar de relativamente simples, é uma figura cheia de contradições: "Mas se ele é paciente, crédulo, submisso, humilde, manso, apático, indiferente, abúlico, cético, desconfiado, descrente e solitário, também não deixa por isso de nos aparecer, em constante contradição consigo mesmo, simultaneamente capaz de se mostrar incrédulo, revoltado, resmungão, insolente, furioso, sensível, compassivo, arisco, ativo, solidário, convivente…".O personagem tem como característica principal o gesto do manguito (o "Toma!"), representando a sua faceta de revolta e insolência”.