1. Já me servi da expressão com referência à Europa. A sua aplicação aos Estados Unidos (EUA) impõe-se, tais as tergiversações aí operadas por Trump em tão pouco tempo, a fazerem resvalar os EUA duma democracia para uma autocracia. De cada vez, recorrerei a um autor americano para me ajudar na reflexão: desta vez, o guia é Walt Whitman (1819-1892), tido como o poeta da América, a quem, em 1915, no poema Saudação a Walt Whitman, Fernando Pessoa, na pessoa de Álvaro de Campos, escreveu: "(…) E cada erva, cada pedra, cada homem era para ti o Universo / (…) Nos teus poemas, a certa altura, não sei se leio ou se vivo (…)". O seu influxo no autor da Mensagem condiz com a admiração que o poeta português nutria pelo maior poeta americano de sempre.
2. “Folhas de erva” (1855, a 1ª de 7 edições, sempre aumentadas) é um Poema que representa "a natureza física, emocional, moral, intelectual e espiritual de um homem" – a obra duma vida, para quem, se o ‘épico antigo’ mitificava o passado, o ‘épico novo’ liga passado, presente e futuro. Em “Canção de mim mesmo”, Walt escreve: "Eu celebro o eu, num canto de mim mesmo, /E aquilo que eu presumir também presumirás, /Pois cada átomo que há em mim igualmente habita em ti. //Descanso e convido a minha alma, /Deito-me e descanso tranquilamente, observando uma haste da relva de Verão". Estes versos negam os dualismos, inscrevendo a ideia do “eu” numa visão panteísta e cósmica. O transcendentalismo que adopta (através de Emerson), por influxo de Kant, contra o empirismo de Locke, postula um mundo que está ‘para além dos sentidos’, até à esfera do divino; em ética, significa que o homem possui faculdades morais que o conduzem ao justo e lhe permitem discernir o bem.
Ora, para Walt, as artes que vigoravam na sua época careciam de qualidade – pobres na abrangência, elitistas, afastadas das necessidades do povo; como afirma, a literatura da época é "profundamente artificial, demente e é mórbida, mesmo na sua alegria". Em consequência, "mais que qualquer outro factor, uma literatura robusta deve ser, sem dúvida, a justificação e a salvaguarda (…) da democracia americana. Poucas pessoas fazem ideia da extensão em que a grande literatura penetra em todo o lado, dá cor a tudo, guia as massas, molda as personalidades", escreveu Walt durante a Guerra Civil americana, na qual participou como voluntário e enfermeiro e, mais tarde, na reconstrução do país. Uma das temáticas mais exploradas são os problemas sociais de seu tempo – a escravidão, emancipação da mulher, condição dos trabalhadores, guerra, necessidade de democracia. Para o Poeta, a Grécia é um exemplo: a sua literatura e estética foram "a estrutura que lhes permitiu sobreviver durante centenas e milhares de anos". Com a literatura e as artes configura-se uma nação; os atributos que Platão atribuía ao filósofo, Whitman confere-os ao poeta – ele é o Homero dos EUA.
Não em vão é um poeta que iguala homens e mulheres numa época em que estas eram subjugados, reconhece e integra as minorias quando um terço da população do sudeste dos Estados Unidos era escrava negra, luta pela dignificação dos animais que eram vistos como meras ferramentas ou alimento: "Acho que poderia viver com animais: são tão plácidos e independentes; /Nunca me canso de olhar para eles".
3. “Visões Democráticas” (1871) ilustra um Whitman como exímio prosador, livro traduzido (2012) pelo meu colega Jaime Becerra da Costa, que junta um notável “Estudo Preliminar” numa edição primorosa da editora bracarense “Opera Omnia”. Partindo duma reflexão sobre a América, Walt acaba por fazer uma reflexão sobre a democracia e as exigências que esta impõe.
Com o seu escrito pretende remar contra a mediocridade, a corrupção, a falta de ideais, a arte conformista, a vida cómoda e o materialismo, pois, "(…) com um progresso material sem precedentes – a sociedade, nestes Estados Unidos, encontra-se cancerada, é grosseira, supersticiosa e pútrida". Denuncia a democracia degenerada da América, que gera um crescimento sem desenvolvimento, e que, embora supere as outras nações na indústria e noutros vectores, falta-lhe uma cultura distinta, uma identidade espiritual. Os EUA falham até em seus “poderes”, à excepção do poder judicial – hoje a ser minado na era de Trump.
Walt observa com angústia: "(…) o certo é que o problema do futuro da América é, nalguns aspectos, tão obscuro como grandioso. Já estão a incubar, entre nós, o orgulho, a rivalidade, a discriminação, a obstinação viciosa e uma licenciosidade sem igual". O eco do seu pessimismo mostra-se hoje, até socialmente, pois Trump não era um desconhecido, e foi eleito por mais de metade dos americanos.
Whitman transpõe para o domínio literário a máxima política – o "(…) “Governo do Povo, pelo Povo, para o Povo”, que herdámos dos lábios de Abraham Lincoln, uma fórmula cuja configuração verbal é do engenho mais elementar". A “visão democrática” de Whitman é tão grandiosa que chega a ser utópica.
O autor não segue o denominado “acordo ortográfico”