1. Em 1975, já lá vão cinquenta anos, foi publicado um livro com o título “The Collapse of Democracy”. Quatro anos depois, em 1979 e já traduzido para português, o “Colapso da Democracia” surgiria nas nossas livrarias. O seu autor, o australiano Robert Moss que foi jornalista do The Economist e teve assídua participação no The Daily Telegraph, no The New York Times Magazine e na BBC, quis então alertar os leitores para a circunstância de certas correntes políticas, nomeadamente as marxistas-leninistas, se quererem apropriar do voto democrático para destruírem as próprias democracias. Mas tão ou mais relevante que o alerta lançado, Robert Moss chamava a atenção para duas questões que na época pouca atenção despertaram. Polémico para muitos, Moss teve a ousadia de dizer “que a democracia não é nem uma forma de vida nem um sistema particular de sociedade, nem uma filosofia”. Para ele a democracia era “um mecanismo para manter ou remover governos por decisão da maioria”. Na sua perspectiva o que poderia sustentar e manter as democracias eram os valores que a sociedade tinha de saber preservar, valores esses que tinham de ser respeitados e defendidos independentemente das opiniões naturalmente transitórias que as maiorias eleitorais transmitem.
2. Curiosamente, ou talvez não, num Fórum recentemente promovido pelo IDL-Instituto Amaro da Costa, Alexandre Franco de Sá, professor da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, convidou os participantes a reflectirem sobre se a democracia é um valor em si mesmo ou um meio para defender valores que se consideram essenciais à boa Cidade. O desafio que foi feito a quem o ouviu, tal como o desafio que Moss tinha lançado no seu livro, não nos pode deixar indiferentes. Bem sei que alguns mais apressados tenderão a rejeitar as proposições e concluirão pela crítica fácil da reflexão que ambos os pensadores nos apresentam. Não faltarão vozes a falar dos grandes princípios do Estado Democrático, esquecendo talvez convenientemente que o Estado Democrático não é apenas democrático, mas Estado de Direito Democrático e que a expressão “Direito” não se resume a uma perspectiva positivista; como não faltarão espíritos inquietos para quem os elementos constitutivos e mais expressivos da democracia são por si só elementos suficientes de defesa deste tipo de regime. Na ânsia voraz de pensarem em função do que é rotineiramente propagandeado, estas vozes e estes espíritos tendem a não olhar para os ventos da história e a não compreenderem a sempre útil distinção entre a aparência e a essência.
3. Vem isto a propósito do tema que hoje nos ocupa e que grosso modo foi inspirado no relatório “V-Democracy”, da Universidade de Gotemburgo. De acordo com esse relatório, e de forma simples, as democracias recuaram e as autocracias avançaram. Dir-se-ia, seja qual for a opinião que possamos ter sobre os critérios que determinaram a “medição” feita e a conclusão encontrada, que estamos a assistir ao que Robert Moss anunciou e previu: ao “Colapso da Democracia”. E se assim for qual será a razão? Como pode a democracia enquanto governo do povo ou da maioria do povo que vota estar a ser destruída pelo próprio povo? Estará o povo a revoltar-se contra si próprio? A pergunta não tendo uma resposta simples, pelo menos para mim, talvez nos deva convidar a ler e ouvir quem merece ser lido e ser ouvido. Se nos limitarmos a análises métricas e nos detivermos diante retóricas cheias de coisa nenhuma, talvez não consigamos perceber o que verdadeiramente está em causa. E o que está em causa são os valores do Ocidente e os princípios que estiveram na sua origem. São esses valores que progressivamente foram sendo corroídos e que ao serem progressivamente corroídos nos conduziram para a situação em que nos encontramos. Não o entender poderá ser cómodo ou até conveniente, mas não é o mais certo. Na realidade, quando o valor da dignidade da pessoa humana é substituído pelo relativismo moral, quando a família é substituída pelo livre-arbítrio de um qualquer programa escolar e quando o bem comum é confundido com o utilitarismo individualista, os alicerces que sustentavam a nossa civilização ficam fragilizados e a democracia fica impotente para resistir. É isto que nos deve preocupar e que nos deve mobilizar se quisermos, como devemos querer, manter o Estado de Direito Democrático.