Apesar de ser um dos textos propostos para a celebração do Matrimónio, o tema principal de Jo 2, 1-12 (Bodas de Caná) não é propriamente o casamento1. Mesmo assim, é esse o seu enquadramento: “Houve um casamento em Caná da Galileia” (v. 1). Por se tratar do evangelho do próximo Domingo (II do Tempo Comum/Ano C) e no sentido de contribuir para a sua compreensão, propomo-nos apresentar o casamento, em Israel, ao tempo de Jesus.
Na sociedade judaica desta época – como ainda hoje, em ambientes judaicos mais vincadamente religiosos – o casamento era (é) considerado um evento sagrado, na sequência de um mandamento divino (mitzwah), e era celebrado com grande alegria e festividades. Não consistia apenas na união entre um homem e uma mulher, ambos judeus, de preferência2, mas também entre as suas famílias, contribuindo para o fortalecimento da comunidade.
Os casamentos eram, à época e na maior parte dos casos, arranjados pelas famílias, tendo em conta interesses sociais, económicos e religiosos. Partindo do princípio que o jovem e a jovem consentiam – era essa a regra geral –, os pais negociavam os termos do casamento, incluindo o dote (mohar3).
Após essa negociação, dava-se o primeiro encontro (shidukin) e era formalizado o noivado (eirusin ou kidushim). Durante essa cerimónia, assinava-se um contrato legal (ketubah4), em que se detalhava os deveres do noivo para com a noiva e a garantia (dinheiro ou propriedades) a entregar à esposa, caso o vínculo terminasse5.
Começava assim um período de espera, de cerca de um ano, durante o qual o noivo preparava um lar, na casa da sua família, para a sua futura esposa. A noiva também se preparava para o casamento, reunindo os seus pertences e preparando-se para se tornar esposa6. Permanecendo separados fisicamente, os noivos já estavam comprometidos e obrigados a permanecerem fiéis um ao outro (cfr. Mt 1, 18-25).
No dia do casamento, o noivo ia buscar a noiva a casa de seus pais7, numa procissão festiva, acompanhada por amigos e familiares, com tochas, música, cânticos e danças. A noiva estava também acompanhada das suas amigas, munidas de lâmpadas para o caminho (cfr. Mt 25, 1-13).
A cerimónia de casamento (nissuim) realizava-se na sinagoga ou mesmo na casa do noivo ou de um seu parente próximo, sob uma tenda (chuppah8), simbolizando o novo lar do casal. Consistia na leitura da ketubah, na recitação das sete bênçãos (shevá berachot9), na declaração do compromisso10 e na entrega do anel ou de outra qualquer peça preciosa do noivo à noiva11. Seguia-se uma refeição comemorativa que durava vários dias, em que não podia faltar comida, bebida, música e danças para celebrar a união do casal. A família do noivo era responsável por prover ao necessário.
Após o banquete ou noutro momento previamente estabelecido, o casal retirava-se para o quarto nupcial, a fim de consumar o casamento. Em algumas tradições, havia até o costume da verificação do lençol nupcial após a consumação, como prova da virgindade da noiva, exigida e muito valorizada pela Lei (cfr. Dt 22, 13-21).
O casamento assumia um valor espiritual muito elevado, dado que, olhado como imagem e representação do relacionamento entre Deus e o seu povo, o amor e a fidelidade entre marido e esposa eram considerados um reflexo do amor e da fidelidade de Deus para com o seu povo (cfr. Is 62, 4-5; Ez 16, 8; Os 2, 19-20) e de Cristo para com a sua Igreja (cfr. Jo 3, 29; Ef 5, 25-32; Ap 19, 7-9).
1 De facto, o texto não fala da noiva nem do ritual das bodas. Pelo contrário, e entre outras coisas, dá um particular relevo a Jesus, qual noivo da Nova Aliança, simbolizada na excelência da água transformada em vinho.
2 Por regra, um jovem judeu só casava com uma mulher estrangeira se esta se convertesse ao judaísmo.
3 A palavra é usada em Ex 22, 15-16, no contexto da possibilidade de um pai não conceder a sua filha a um jovem que com ela teve relações antes do casamento.
4 Assinado pelo noivo, este documento tornava-se pertença da noiva.
5 O casamento terminava mediante um “documento de repúdio” (Mc 10, 4), chamado get (deve ler-se “guet”), num momento em que, além do casal em vias de separação, deveriam estar duas testemunhas e um escriba. O documento era escrito à mão, em aramaico ou hebraico. Mais tarde, para a sua leitura, passou a exigir-se a presença de um rabino ou de um tribunal de três rabinos.
6 Apesar da sociedade ser patriarcal e o homem ser visto como o chefe de família, a mulher tinha um papel central no lar.
7 Esta ida carecia da permissão do pai da noiva.
8 Deve ler-se “rupá”. Era confecionada em tecido ou, na sua falta, bastava esticar o talit (uma espécie de xaile, feito de seda, lã ou linho, usado como cobertura nas preces judaicas) do noivo, por cima de quatro varas. Por regra, esta tenda era aberta por todos os lados, simbolizando a desejada e esperada hospitalidade incondicional do casal em relação aos seus amigos e parentes.
9 Essas sete bênçãos eram recitadas sobre uma taça de vinho e incluem louvores a Deus, gratidão pela criação da humanidade e pedidos de bênçãos para o casal.
10 Apesar de não haver registo escrito dessa declaração, é de supor que o noivo dissesse, à época, algo de semelhante ao que diz hoje: “Com este anel, estás consagrada a mim, de acordo com a lei de Moisés e Israel”; e a noiva dissesse: “Eu sou para o meu amado e o meu amado é para mim” (Ct 6, 3).
11 O famoso rito de quebrar um copo, simbolizando a destruição do Templo de Jerusalém e os desafios que o casamento pode enfrentar, não é do tempo de Jesus, mas posterior.