Com o reavivar de velhas aspirações gnósticas e o descobrir e publicar de textos gnósticos, uma série de mitos associados à relação entre o Gnosticismo e o Cristianismo começaram a popular a Internet, livros de esoterismo e – espante-se pelo uso de um termo de proveniência cristã – de “espiritualidades”.
Mas o que é o Gnosticismo? É um conjunto de diversas amálgamas excêntricas de elementos de diferentes filosofias, religiões e pensamentos (alguns deles anteriores ao Cristianismo e até já provavelmente presentes, para serem recriminados, em textos como 2Cor. e Col.), mas que, no entanto, ganharam ímpeto e estruturação no séc. II d.C., ao transformarem-se numa espécie de parasitas do Cristianismo. Neste sentido, ser cristão e gnóstico é uma contradição.
De facto, os gnósticos procuravam certos elementos pertencentes ao Cristianismo, acabando por os distorcerem para melhor confirmarem as suas grandes teses, nomeadamente: 1) que quem criou o Universo não foi o Deus verdadeiro, mas um demiurgo incompetente e/ou mau; 2) que a salvação era fruto de um conhecimento (geralmente secreto e oral) que libertaria uma centelha divina que estava presa na matéria (tida erradamente como má, a ponto de dizerem que o suporte material do corpo de Jesus era uma mera aparência).
Sabemos que tudo o que é secreto gera secretismo e fascínio, e a auto-caminhada para a salvação (não do pecado, mas da matéria e das influências do demiurgo e de outros seres intermédios) proposta pelos gnosticismos atraiu um número considerável de cristãos ávidos de possuírem os supracitados conhecimentos secretos que, surgindo como cogumelos alucinados e alucinogénios, os constituíam em seitas elitistas. Pergunto: não estaremos a viver isto hoje?
Durante quase todo o século II (e mais além) um longo e moroso enfrentamento entre a verdade Cristã e os mitos gnósticos foi levado a cabo, pois não só foi preciso advertir, corrigir e até mesmo expulsar, das comunidades da Grande Igreja, fiéis (inclusive sacerdotes e bispos) que estavam a perverter a mensagem original que Jesus transmitira aos Seus apóstolos.
Distintas e diversas foram as estratégias levadas a cabo pela Grande Igreja. Desde logo, o nosso já conhecido Inácio de Antioquia propôs uma teologia centrípeta que contrapusesse as especulações centrífugas gnósticas. Ou seja: se os gnósticos se iam sucessivamente dividindo e subdividindo devido a desacordos e ao surgir de novas seitas, Inácio cuidou de organizar as comunidades ao redor dos bispos que, unidos entre si e sobretudo a Cristo, constituíam a garantia de que o que era veiculado num dado momento e lugar, fora já comunicado desde os apóstolos e era transmitido noutra comunidade da Grande Igreja.
Depois, temos uma assaz curiosa estratégia empregue por Clemente de Alexandria: importar os termos gnósticos para a teologia cristã, mas tirando-lhes o sentido gnóstico e dando-lhe um outro significado cristão (que era assim exportado). Por exemplo: o “verdadeiro gnóstico” era o “cristão adulto na sua fé”; o “martírio gnóstico” era o “martírio segundo o Evangelho”; etc.
Mas estes planos individuais não chegaram, e, assim, surgiu a ideia de “tradição”. Esta acabou por ser dividida em três elementos institucionais: as “regras de fé” (ou fórmulas “credais” um pouco mais longas); o cânone; e a sucessão apostólica dos bispos. Aqui regressaremos.