Depois das catastróficas inundações que há cerca de dois meses assolaram alguns países da Europa Central, entre os quais a Polónia, a Alemanha, a República Checa, a Roménia, a Sérvia, a Bósnia e a Áustria, vitimando mortalmente perto de 70 pessoas e deixando um rasto de destruição e prejuízos estimados em muitos milhares de milhões de euros, eis que, na terça-feira da semana passada, nova e maior tragédia se abateu sobre as zonas ribeirinhas e industriais de Valência (fora do centro) e várias cidades e aldeias da Comunidade Valenciana: uma tempestade diluviana – DANA (acrónimo da expressão castelhana “Depresión Aislada en Niveles Altos”) ou “gota fria”, como em Portugal é designado o fenómeno das chuvas torrenciais – matou mais de 200 pessoas, deixou centenas de desaparecidos, fez mais de 4.000 feridos, danificou e inutilizou cerca de 100.000 carros e destruiu casas, pontes e vias de comunicação, semeando desespero e angústia em tantas e tantas famílias.
Se é verdade que estes fenómenos climáticos sempre existiram e que, no caso de Espanha, ocorrem normalmente no outono e inverno, está hoje cientificamente comprovado que as alterações climáticas resultantes do aquecimento global da Terra intensificam e levam ao extremo tais fenómenos, com consequências cada vez mais graves para a humanidade e para a natureza.
E a situação é tanto mais preocupante quanto é certo que, se as consequências das actuais alterações climáticas se tornaram especialmente perigosas com uma subida da temperatura de 1,3 graus centígrados, pode imaginar-se quanto mais perigosa ela será se, como alerta a ONU, o mundo estiver a caminho de registar, até ao final do século, um aquecimento de 3,1 graus centígrados!
Quer isto significar que a realidade dramática das alterações climáticas fez das tempestades diluvianas que venho de referir o “novo normal”, para usar a feliz expressão da Presidente da Comissão Europeia, Úrsula von der Leyen.
Esta mudança de estrutura do sistema meteorológico reclama, por isso, estratégias, compromissos e políticas comuns e globais de neutralidade climática que visem reduzir significativamente as emissões de carbono e operar a rápida transição para energias limpas. Reivindica, ainda, a assunção de políticas de ordenamento do território que previnam e minimizem os riscos ambientais decorrentes de tais eventos extremos. E impõe, igualmente, a adopção de mecanismos e medidas de protecção civil altamente especializados e eficientes, como ficou patente com a tardia e lenta intervenção das autoridades espanholas, quer nos avisos quer na ajuda às populações afectadas pela tromba de água.
Não cabe no propósito deste meu escrito elencar concretamente medidas de mitigação e de redução do risco de cheias e inundações como as que recentemente aconteceram. Pretendo sim enfatizar que tais riscos constituem também problemas de ordenamento do território que, como tal, devem ter resposta no desenho do modelo e na definição do programa para o território. Daí que seja prioritário incluir nos diversos instrumentos de planificação, nos diferentes níveis em que os mesmos se desenvolvem – nacional, regional e municipal – o levantamento e análise dos riscos naturais presentes no território e a previsão de medidas e acções que visem a sua prevenção.
E a este propósito, vale a pena lembrar que será muito oportuno aproveitar a revisão dos Planos Directores Municipais que está em curso nos municípios portugueses para proceder aí ao levantamento dos diferentes riscos naturais que em cada um deles existem, designadamente de zonas inundáveis nos aglomerados urbanos mais expostos a cheias e à realização de estudos e análises de avaliação e gestão de tais riscos, com vista à definição e gestão do uso do solo compatível com os mesmos e à redução das consequências prejudiciais. É justamente essa a finalidade da cartografia de risco prevista na vigente legislação sobre ordenamento do território.
Entretanto, não resisto a partilhar com os meus estimados leitores uma nota curiosa sobre as cheias em Valência.
No final do verão, visitei terras espanholas da comunidade valenciana, entre as quais a cidade que é sua capital – Valência – que muito apreciei.
Entre os espaços visitados, contou-se o dos Jardins do Túria, construídos no final do século XX, com 10 km de extensão e que ocupam 120 hectares de leito seco (do rio Túria), sob projecto do conhecido arquitecto catalão, Ricardo Bofill.
Fiquei então a saber que todo este enorme espaço, onde se incluem várias pontes, resultou do desvio daquele rio para um novo leito artificial, a sul da cidade, após uma catastrófica cheia, ocorrida em 1957. E, também, que, já há mais de 500 anos (27-09-1517), a cidade de Valência fora inundada e devastada pela força de águas diluvianas, tendo-se registado centenas e centenas de mortos, tragédia que então foi comparada com o episódio bíblico da Arca de Noé.
Percebe-se, assim, por que razão o centro da cidade não foi agora inundado. Ainda bem! Valência é só a terceira cidade mais populosa de Espanha – 814.208 habitantes.
Importa, por tudo isto, colher as lições do passado e do presente e empreender as mudanças necessárias para minimizar e evitar tragédias como as que agora vêm ocorrendo por todo o mundo com inusitada frequência. O dilúvio bíblico não pode ser normalizado.