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Quem anda à chuva molha-se

 

 

Se há lição que todos podemos retirar dos 50 anos em que vivemos em Democracia é que esta foi construída com “pés de barro”, o mesmo é dizer, com defeitos estruturais que nos impediram, como povo, de ascender a num sistema que tinha tudo para dar certo. Infelizmente, fizemos o que não devia ter sido feito: viramos as costas, fizemos de conta, assobiámos para o lado, numa triste sina que originou defeitos prolongados no tempo, com nefastas consequências para o país. Não admira, pois, que apesar dos avisos contínuos, setores vitais para a sociedade portuguesa continuem a mostrar debilidades inconcebíveis. A saúde, a educação, a habitação e a justiça estão no topo da lista de um cruel e brutal desfasamento entre os direitos fundamentais e os recursos disponibilizados pelo Estado (nós) a setores cruciais que continuam a alimentar-se da inépcia e incapacidade de controlo do Estado sobre a ganância, a vaidade e o poder pelo poder. Não admira, pois, que o caminho seja cada vez mais estreito, que as soluções sejam como a pescadinha de rabo na boca: consumir recursos sem eficiência e eficácia suficientes para antecipar problemas e resolver os que a dinâmica económica e social exigem a cada momento da vida coletiva. Apesar da licitude do protesto, não vejo que o Manifesto dos 50, a propósito do Estado da Justiça, resolva o que quer que seja, tão só porque não há vontade do lado criticado em mudar. A cristalização e o excesso e/ou abuso predominante nos diversos setores da administração da justiça, sobre o valor da autonomia responsável, revelam um profundo contraste entre o seu exercício e a realidade, de tal modo, que o desfecho acaba por dinamitar a boa-vontade que existe de termos uma justiça célere, equilibrada e respeitadora da independência dos diversos poderes em presença. Não obstante os alertas sucessivos, temos uma magistratura que se colocou na linha de fogo político, por culpa própria, não por ingenuidade, ignorando os excessos cometidos e cavalgando uma onda sobre o exercício dos eleitos, sejam estes sujeitos a sufrágio local ou nacional e até europeu. Um dos erros fundamentais é uma propensão imaginativa sobre o exercício do poder político e da legitimidade democrática de quem gere um orçamento e um programa de ação que a cada momento e sujeito a negociação e a cada momento exige que se eliminem entraves e disposições legais que possam constituir uma entropia ao crescimento e desenvolvimento do país. Maltratar um setor, escrutinado diariamente pelo povo, arvorando-se de superioridade moral, é meio caminho andado, como se está a ver, para um “suicídio” do prestígio e da integridade. O que faz falta – ontem já era tarde – é a vontade de eliminar a presunção sobre a superioridade de julgar um dos pilares da Democracia, fazendo uso de um exercício que revela um excesso da formalidade inconsequente, numa boa parte dos casos, sobrecarregando os cidadãos com uma visão “aristocrática” sobre o exercício do poder da justiça. A magistratura tanto abusou da sua absoluta predominância no dia a dia dos portugueses, que não percebeu a tempo que estava a esticar a corda. O Manifesto dos 50 é, nesse sentido, um exemplo que devia e podia ter sido evitado. Adivinha-se uma “guerra” em que todos perderemos, capaz de contaminar a seu tempo, setores onde se exige uma posição idêntica como a habitação. 

O documento ilustra de forma clara o que há muito todos percecionamos: “a melhor e mais nobre comemoração que podemos assumir nos 50 anos de Democracia é reconhecer de forma digna e leal o que a está a fragilizar e, honrando o nome dos que por ela lutaram, ter a coragem a vontade de mudar”. Ninguém pode estar contra esta disponibilidade para a Mudança. Começar pelo ensino transversal dos saberes e pela formação contínua da magistratura, eliminando a sobranceria de uma autonomia, exercida por vezes de forma irresponsável, é um bom começo. O que se espera por parte da Magistratura é que faça uma reflexão e proponha soluções que articulem a sua legitima autoridade na administração da justiça e o dever de se sujeitarem ao escrutínio. Em Democracia, o poder não é falocêntrico como outrora. As novas gerações de magistrados têm a obrigação de perceber isto, sobretudo, de pugnar pela eliminação da burocracia processual que não acrescenta valor ao seu exercício. Se continuarem a achar que a atual crispação é uma tentativa de interferência da classe política na sua ação, sofrerão as consequências na Assembleia da República. É indesejável que tal aconteça. Tudo depende da capacidade de perceber e atuar sobre os defeitos da sua ação para a melhoria do sistema democrático. 

 

 

 

 

Paulo Sousa

Paulo Sousa

5 maio 2024