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Um hino à fraternidade universal

Terminou ontem a 10ª edição do Festival Internacional de Órgão de Braga (FIOB), desta vez dedicado ao órgão e ao canto coral. Por razões diversas, só consegui estar em alguns dos concertos, mas apraz-me registar a enorme qualidade do que ouvi1, bem como a novidade de o referido Festival ter saído dos limites estritos do concelho de Braga, promovendo um concerto, de elevado nível artístico, no Grande Órgão da Igreja Paroquial de Prado (20 de abril).

Sem desprimor para com nenhuma das obras e dos repertórios executados nas diferentes Igrejas, permitir-me-ão que destaque o concerto final, na Igreja de Santo Adrião, na tarde de ontem: a Nona Sinfonia de Ludwig van Beethoven (1770-1827), em ré menor, op. 125, considerada por muitos um dos maiores ícones da música ocidental e mesmo a maior composição musical da história. E a razão para esse destaque tem a ver com a obra em si, com a celebração dos seus 200 anos e com a afirmação da sua atualidade, num tempo de guerras, polarizações e extremismos, em que os valores universais tendem a ser esquecidos e até negados. Já tinha escutado ao vivo o seu quarto andamento, mas nunca a tinha ouvido na sua inteireza. Penso que não será necessário dizer que se saí desta audição mais rico, musical e humanamente falando.

Encomendada pela Royal Philharmonic Society de Londres, em 1817, e escrita entre 1822 e 1824, a obra foi dedicada a Frederico Guilherme III, da Prússia, e foi escutada, pela primeira vez, no Kärnthnertortheater2, em Viena (Áustria), em 7 de maio de 1824. Está prestes a fazer duzentos anos! 

A Nona Sinfonia é não apenas a última de Beethoven como também o “ápice do génio do seu autor” (Hector Berlioz). E, no dizer de Richard Wagner, “traz para a orquestra as palavras, a poesia e a voz humana”. De facto, ao incorporar numa sinfonia o canto3, Beethoven atribuiu à voz humana uma relevância equivalente à dos instrumentos. A obra tornou-se assim percursora do Romantismo e um modelo seguido por diversos compositores (de Gustav Mahler a Luciano Berio), nos séculos seguintes4.

O texto do seu quarto andamento é um excerto do poema An die Freude (À alegria), do poeta romântico Friedrich Schiller (1759-1805), que exalta os grandes valores humanistas. Assume-se, por isso, como um hino à fraternidade universal e, em 1985, com um arranjo de Herbert von Karajan, foi até escolhido como hino oficial da União Europeia, entoado nas suas cerimónias oficiais.

Antes disso, já tinha sido usado na banda sonora de alguns filmes: A Clockwork Orange (Laranja mecânica), de Stanley Kubrick (1971)5; e Die Hard (Assalto ao Arranha-céus, em Portugal; Duro de Matar, no Brasil), de John McTiernan (1988)6. É dever ainda referir que a sua partitura, depositada na Biblioteca Estatal de Berlim7, foi declarada pela UNESCO Património Cultural da Humanidade. 

A força expressiva da sua música e a pertinência da letra do seu quarto andamento fazem da Nona de Beethoven uma das sinfonias mais amadas e interpretadas do repertório musical, em todo o mundo. Escrita em plena surdez do seu compositor, são de destacar a intensidade, a variedade e as novidades desta composição musical. A obra em causa sufraga o que sobre o seu autor disse Victor Hugo: “esse surdo ouvia o infinito”.

 

 

 

1 Pela sua beleza e exuberância, não posso deixar de referir o Te Deum de Jean-Baptiste Lully (1632-1687), brilhantemente executado pelo Coro e Orquestra do Distrito de Braga, no passado dia 26 de abril, na Igreja do Pópulo. Nunca esta obra tinha sido apresentada em Braga.
2 É aí que hoje se encontra o Hotel Sacher, famoso internacionalmente pela saborosa torta que ostenta o seu nome.
3 É por isso que a obra é conhecida como Sinfonia Coral ou simplesmente A Coral.
4 “Beethoven encerrava e abria, assim, um capítulo da história da música e, o que é mais importante, do pensamento humano através da música. Não só erguia uma ponte pela qual havia de passar todo o romantismo, como na outra margem estavam já as bases das grandes erupções do sinfonismo de Mahler e de outros compositores posteriores. Por outro lado, também a forma ficava reduzida a um meio graças ao qual o músico podia sentir-se capaz de invocar praticamente tudo; mensagem que foi recebida tanto por Mahler como por Scönberg ou Stravinsky. Neste aspeto, Beethoven foi não só um mestre, mas também um profeta. Pode não ter sido um grande orquestrador ou um grande inovador no que se refere aos instrumentos componentes da orquestra, mas fez dela o veículo mais adequado para exprimir as grandes ideias. E neste plano estamos em dívida para com ele” (J. L. Pérez de Arteaga, Enciclopédia dos Grandes Compositores, vol. 2, Salvat Editora, Rio de Janeiro, 1986, p. 46).
5 O violento Alex DeLarge (Malcolm McDowell) é fã da sinfonia. Após ser preso, um tratamento experimental utiliza a música para traumatizá-lo e, ao ouvir o quarto movimento, ele passa a sentir dor.
6 O quarto movimento da Nona de Beethoven embala o momento em que o vilão Hans Gruber (Alan Rickman) consegue abrir o cofre do Nakatomi Plaza.
7 Faltam-lhe, contudo, cinco páginas: três estão na casa-museu de Beethoven, em Bona, e duas em Paris.

Pe. João Alberto Sousa Correia

Pe. João Alberto Sousa Correia

29 abril 2024