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Pátria Madrasta

Manhã fria e umbrosa de 27 de fevereiro de 1967 e os relógios marcam nove horas; no cais de Alcântara, em Lisboa, o Vera Cruz, um dos maiores navios da marinha mercante portuguesa, agora ao serviço das Forças Armadas, abre portas ao embarque de mil e duzentos militares para Angola onde vão defrontar a guerra colonial, há cinco anos já iniciada. 

Ao mesmo tempo, na imensa gare em frente, milhares de populares – pais, mães, esposas, filhos, irmãos, demais familiares, amigos e curiosos – despedem-se dos militares que se concentram na amurada para corresponder aos acenos da multidão; por consequência, no ar, paira uma onda de emoção ao mesmo tempo de sobressalto e medo, quer nos que ficam, quer nos que partem e se traduz em lágrimas, soluços, mensagens gritadas e acenos de lenços brancos. 

Cerca das dez da manhã o sereno gigante dos mares agita-se, levanta amarras, lança, para os ares pasmados e incólumes da cidade, um uivo medonho e avança, impante e sereno, sobre as águas tumultuosas do Tejo; é, então, que milhares de lenços brancos, como que regidos por invisível batuta de um mestre de orquestra, se agitam num último adeus aos militares que partem ao mesmo tempo que um coro de vozes, plangente e profundo, sobe na paisagem plasmada do porto de mar. 

E a mole imensa de militares concentrados na amurada corresponde aos apelos e gestos dolorosos e lestos dos familiares e amigos elevando os braços num aceno final; e já perto da ponte Salazar, a cerca de cem metros distanciada do cais de embarque, os militares permanecem resolutos e firmes para um último adeus aos familiares que não debandam do cais de Alcântara enquanto se não perde no horizonte o paquete gigante. 

Pois bem, este cenário de embarque e desembarque de militares a caminho e de regresso da guerra em Angola, Moçambique e Guiné repetiu-se incessantemente durante longos treze anos; e não passou para milhares de família de uma dolorosa e forçada operação de resgate a chamada da juventude para, no cumprimento do dever de lealdade e patriotismo, defender a Pátria. 

Ora, nessa manhã de 27 de fevereiro de 1967 o furriel miliciano Fernandes, pai de uma criança de 10 meses, integrando o contingente militar da companhia de caçadores 1974, embarcou para Angola; e, pesaroso e temente, foi o último a abandonar a amurada do Vera-Cruz e a recolher o lenço branco com que enxugava as lágrimas, e Lisboa era, apenas, uma longínqua e difusa mancha de casario vário à distância de uma milha marítima. 

E, agora, passados exatamente dois anos, nove meses e três dias, numa manhã cálida e clara de 3 de junho de 1969, no cais de desembarque em Alcântara, a paisagem humana presente agita-se em rasgados gestos de alegria e felicidade, gritando e acenando, aos mesmos militares agora regressados, exceto aqueles que tombaram em defesa da Pátria, que desciam da amurada pela ponte levadiça do Paquete em que tinham embarcado; e o encontro com os pais, as mães, as esposas, os filhos, os irmãos, os demais familiares, os amigos e os curiosos é um autêntico festival de emoções, carinhos e afetos.

Todavia, o furriel miliciano Fernandes já não tem à espera a esposa e o filho que o abandonaram e trocaram por outra família, incapazes de resistirem às saudades e à ausência do pai e necessidades familiares por tanto tempo; e, agora, só lhe restam, como a tantos milhares de ex-combatentes como ele, os fantasmas medonhos da guerra feitos misérias físicas, humanas e mentais que vai enganando entre as nuvens de fumo de tabaco, dos copos de álcool e do total abandono, feito farrapo e trapo humanos na amputação de ambas as pernas causada pelo rebentamento de uma mina antitanque na frente de combate, numa picada de Angola.

E, depois, o desprezo a que é votado por certos políticos e governantes com apodos de fascista, covarde, traidor por ter respondido aos apelos da Pátria para lutar por ela; e como se o cumprimento do seu dever, para estes portugueses de meia tijela, mais não fosse que uma forma macabra de ser ex-combatente e não ter direito ao reconhecimento e recompensa para, ao menos, curar as feridas, profundas e várias, trazidas da guerra. 

Caso é para proclamar e contestar, alto e bom som: Pátria-Mãe para alguns, Pátria-Madrasta para outros. 

Então, até de hoje a oito.

Dinis Salgado

Dinis Salgado

17 abril 2024