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Ignomínia!

Não dá para acreditar, mas parece que é verdade! O busto em homenagem ao Padre António Vieira – o “Imperador da Língua Portuguesa”, segundo Fernando Pessoa –, uma bela escultura de Graça Costa Cabral, que se encontra, desde 2011, na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), na sequência de uma doação da Câmara Municipal de Lisboa, em retribuição ao busto do escritor Machado de Assis, doado em 2008, vai ser retirado após a aprovação de uma lei que proíbe o município de instalar ou manter estátuas, monumentos e placas de defensores da escravatura e de pessoas que violaram os direitos humanos, conforme a lista da feitura da vereadora Monica Benicio, uma das autoras do projecto de lei – conforme notícia difundida.

A ignorância é tamanha, que aquele que é tido como defensor e precursor dos direitos humanos no século XVII – sim, no século XVII –, que lutou incansavelmente contra a escravatura, é assim destratado por energúmenos, que parece que não lêem. E para que se leia, transcrevo apenas alguns excertos dos sermões de um dos nossos maiores oradores (paginação da Obra Completa do Padre António Vieira, coord. José Eduardo Franco e Pedro Calafate, 30 volumes, publicada conjuntamente em Portugal pelo Círculo de Leitores, no Brasil pelas Edições Loyola).

Contra a diferenciação com base na cor da pele, António Vieira, no seu Sermão da Epifania (1662), alega que "as Nações, umas são mais brancas, outras mais pretas, porque umas estão mais vizinhas, outras mais remotas do Sol. E pode haver maior inconsideração do entendimento, nem maior erro do juízo entre os homens, e homens, que cuidar eu que hei-de ser vosso Senhor, porque nasci mais longe do Sol, e que vós haveis de ser meu escravo, porque nascestes mais perto?" (II, I, 383). Já antes, no Sermão da I Dominga da Quaresma (1653), exorta os colonos a libertarem os seus escravos, usando a expressão “lume natural”, isto é, a razão: "Há algum de vós com o lume natural que o negue? Pois em que duvidais?" (II, II, 237). "Porque melhor é sustentar do suor próprio, que do sangue alheio. Ah fazendas do Maranhão, que se esses mantos e essas capas se torceram, haviam de lançar sangue!" (ib.). Por isso, proclama: "El-Rei poderá mandar que os cativos sejam livres; mas que os livres sejam cativos, não chega lá sua jurisdição" (ib., 241). Julgo que nos seus belos sermões da Baía, do ciclo “Maria, Rosa Mística”, manifesta uma condenação radical da escravatura dos negros: "Entre os homens dominarem os brancos aos pretos é força, e não razão, ou natureza" (II, IX, 169).

Alvos fáceis da cobiça dos colonos, os escravos eram submetidos a condições degradantes, que o Padre jesuíta verberava: "Oh trato desumano, em que a mercancia são homens! Oh mercancia diabólica, em que os interesses se tiram das Almas alheias, e os riscos são das próprias! [...] Os Senhores poucos, os Escravos muitos; os Senhores rompendo galas, os Escravos despidos, e nus; os Senhores banqueteando, os Escravos perecendo à fome; os Senhores nadando em ouro, e prata, os Escravos carregados de ferros [...]" (II, IX, 340-341). E ao assistir à progressiva extinção dos índios, massacrados pelos colonos e dizimados por epidemias, escreve, perturbado, ao Rei (1657): "[...] em espaço de quarenta anos se mataram e se destruíram por esta costa e sertões mais de dois milhões de índios, e mais de quinhentas povoações, como grandes cidades, e disto nunca se viu castigo" (I, II, 226-227). Mais tarde, em 1661, quando Vieira esteve no Pará e no Maranhão (1653-1661), de novo aí lutou contra os colonos que escravizavam os índios no Maranhão, que o expulsaram à força.

"Cada um é da cor do seu coração" – disse Vieira (Sermão XX do ciclo “Maria, Rosa Mística”). E, sobre a cor preta, disserta com ironia: "Os Filósofos buscando as propriedades radicais […], dizem que da cor preta é próprio unir a vista, e da branca disgregá-la, e desuni-la. Por isso a brancura da neve ofende, e cega os olhos. E não é isto mesmo o que com grande louvor dos Pretos, e não menor afronta dos Brancos, se acha em uns, e outros? […]" –, continuando o tema.

Não se pense que era complacente com o poder político. No Sermão do Bom Ladrão (1655), é aos homens públicos que se dirige: "Nem os Reis podem ir ao Paraíso sem levar consigo os ladrões; nem os ladrões podem ir ao Inferno sem levar consigo os Reis. Isto é o que hei-de pregar. [...] Mas o que vemos praticar em todos os Reinos do mundo é tanto pelo contrário, que em vez de os Reis levarem consigo os ladrões ao Paraíso, os ladrões são os que levam consigo os Reis ao Inferno" (II, IV, 433). Quando necessário, nem o próprio soberano escapava às suas admoestações: "Sabei, Cristãos, sabei, Príncipes, sabei, Ministros, que se vos há-de pedir estreita conta do que fizestes, mas muito mais estreita do que deixastes de fazer. Pelo que fizeram, se hão-de condenar muitos, pelo que não fizeram, todos" (II, I, 162).

Crítico severo das desigualdades, increpa os homens públicos, avisando que o melhor antídoto da corrupção é o mérito: "A porta por onde legitimamente se entra ao ofício, é só o merecimento", verificando-se que "uns entram pelo parentesco, outros pela amizade, outros pela valia, outros pelo suborno, e todos pela negociação" [Sermão do Bom Ladrão, 1655, diante do rei e da corte] – palavras hoje actuais!

Vieira foi de tal modo avançado para o seu tempo que defendeu que as relações com as comunidades indígenas do Brasil se deveriam reger pelo jus gentium: o índio deve ser visto "como membro que é do corpo e cabeça política da sua nação, importando igualmente para a soberania da liberdade tanto a coroa de penas, como a de ouro, e tanto o arco como o ceptro" (IV, III, 276) – lídima e revolucionária defesa da soberania das nações indígenas. Não admira que os nativos o tenham reverenciado como Paiaçu [“Grande Pai”], pela vida nova que lhes trouxe, ele que, falando sete idiomas indígenas, bem os entendia.

É preciso mais para rejeitar posições tresloucadas? Se ler e raciocinar é pedir de mais aos woke, o meu convite é: leia-se o Padre António Vieira, muito à frente do seu tempo, incompreendido, expulso do Maranhão pelos colonos, condenado pela Inquisição. Estranhamente, é-o ainda hoje, pela ignorância e fanatismo. Sigamos antes José Saramago: "Chegam dias de férias, uma boa ocasião para entrar […] nesta língua escrita pelo Padre Vieira. Não aconselho nada a ninguém, mas digo que vou mergulhar na melhor prosa […]. Alguém quer acompanhar-me?" Acompanhar o nosso Nobel da literatura? Certamente.

 


O autor não escreve segundo o denominado “acordo ortográfico”

Acílio Estanqueiro Rocha

Acílio Estanqueiro Rocha

5 dezembro 2023