A Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo (Festa de Cristo Rei), a celebrar no próximo domingo, foi instituída em 11 de dezembro de 1925 (Ano Santo), pelo Papa Pio XI2, com a encíclica Quas Primas3. Assinalava assim os 1600 anos do I Concílio de Niceia (325), em que se afirmou a divindade de Cristo4, e procurava combater o crescimento de correntes de pensamento laicistas e modernistas que se opunham aos valores cristãos. Pio XI pretendia mesmo que os estados civis reconhecessem Cristo como Rei, mas rapidamente se percebeu que tal não era possível e a festa foi reconduzida ao seu sentido teológico e litúrgico.
Segundo a determinação do Papa, a Solenidade em causa começou por ser celebrada no último domingo de outubro, apontando para a de Todos os Santos. Após o Concílio Vaticano II, a reforma litúrgica (1969) colocou-a no último domingo do Ano Litúrgico, a encerrar as celebrações anuais dos mistérios cristãos. Assim se afirma, com clareza, que Jesus Cristo, o Rei, é a meta da nossa peregrinação terrena.
O tema da realeza é universal, marca presença na vida e na literatura de todos os povos, tempos e latitudes. Tal acontece também na Sagrada Escritura, onde a realeza terrena evoca necessariamente a divina. No Antigo Testamento, o destaque vai para os Salmos reais (Sl 47; 93; 96-99), de onde emerge a ideia de que a realeza de Deus é a afirmação do seu projeto de salvação e de juízo, de libertação e de vitória sobre o mal e a injustiça. No Novo Testamento, para além do uso frequente da expressão “reino dos céus” ou “reino de Deus” (mais de 160 vezes), destaca-se a realeza de Jesus, afirmada perante Pilatos: “É como dizes: Eu sou rei! Para isto vim ao mundo; para dar testemunho da Verdade. Todo aquele que vive da Verdade escuta a minha voz” (Jo 18, 37). Antes, contudo, Jesus tinha explicitado o sentido dessa afirmação: “A minha realeza não é deste mundo; se a minha realeza fosse deste mundo, os meus guardas teriam lutado para que Eu não fosse entregue às autoridades judaicas; portanto, o meu reino não é de cá” (Jo 18, 36).
É nos Evangelhos Sinóticos que Jesus Cristo5 afirma o serviço como alicerce e caraterística diferenciadora da sua realeza: “Sabeis que os chefes das nações as governam como seus senhores e que os grandes exercem sobre elas o seu poder. Não seja assim entre vós. Pelo contrário, quem entre vós quiser fazer-se grande, seja o vosso servo (...). Também o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a vida para resgatar a multidão” (Mt 20, 25-28; cfr. Mc 10, 42-45; Lc 22, 25-26). Nessa linha se situa também Mt 25, 31-46, o texto do evangelho desta Solenidade, no Ano A, onde se afirma que recebem como herança o reino (v. 34) aqueles que tiverem praticado obras de misericórdia (vv. 35-36).
A leitura atenta dos textos neotestamentários que nos falam da realeza de Jesus permite-nos concluir que o seu é diferente dos reinos deste mundo: “não foi inaugurado por uma solene parada militar, mas com a prisão do soberano; não foi apresentado ao mundo com uma grandiosa cerimónia de entronização, mas com uma crucifixão e com uma cruz como trono” (G. Ravasi, Secondo le Scritture, Anno A, p. 310).
A realeza de Jesus evoca um reino de santidade e justiça, de amor e paz. É um reino de verdade, libertação e vida, temido pelos poderosos e prepotentes, mas acolhido pelos pobres e injustiçados6. Porque dom de Deus, importa pedi-lo, porventura usando a petição do Pai Nosso: “Venha a nós o vosso Reino”.
1 Versão, em português, da letra do cântico Christus vincit, Christus regnat, Christus imperat, composto por Aloÿs Kunc, nascido em Cintegabelle, a 1 de janeiro de 1832, e falecido em Toulouse, a 7 de março de 1895.
2 Este Papa ficou para a história também em virtude do impulso que deu às Missões e à Ação Católica.
3 Na primeira encíclica do seu pontificado, Pio XI justifica a promulgação desta festa: “as festas têm maior eficácia do que qualquer documento do magistério eclesiástico, por captar a atenção de todos, não só uma vez, mas o ano inteiro, atingem não só o espírito, mas também os corações”.
4 Essa divindade havia sido negada pelo arianismo, uma heresia do séc. IV, fundada por Ario, presbítero de Alexandria (Egito).
5 Convém lembrar, a propósito, que o título “Cristo” é de origem grega e significa “Ungido”. O termo hebraico correspondente é “Messias”, que evoca a antiga tradição de ungir com óleo os profetas, os sacerdotes e os reis, simbolizando a penetração do Espírito e a preparação para a missão.
6 Tudo isto nos traz à memória o prenúncio do cântico de Maria: “Manifestou o poder do seu braço e dispersou os soberbos. Derrubou os poderosos de seus tronos e exaltou os humildes. Aos famintos encheu de bens e aos ricos despediu de mãos vazias” (Lc 1, 51-53).