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Contradições escancaradas

Há pouco mais de um mês, os Secretários de Estado do Trabalho e do Desporto vieram a Braga declarar que as “portas estão escancaradas” para os emigrantes que queiram “fazer vida” em Portugal. Discursando na abertura da 10.ª edição do Encontro Europeu de Jovens Lusodescendentes, Miguel Fontes e João Paulo Correia asseguraram que a fixação de talentos é a prioridade de um país doravante “competitivo” e “capaz de atrair jovens qualificados”. A cartilha em torno do programa “Regressar” – que inclui uma comparticipação nas despesas da viagem e no transporte dos bens, assim como uma série de incentivos fiscais – não cessa de martelar que cerca de 20 000 compatriotas já terão aproveitado a oportunidade para voltar às origens. A estes ter-se-ão ainda juntado alguns nómadas digitais. Contudo, o próprio das portas escancaradas é permitir circular em ambos os sentidos…

De acordo com o Observatório da Emigração, cerca de 60 000 Portugueses emigraram em 2021, um número que sobe para 71 000 nas estatísticas da Pordata. Aliás, se somarmos os fluxos para o exterior da última década (2013-2022), a maior base de dados nacional contabiliza mais de 900 000 partidas. A tendência parece não esmorecer, como corroboram os resultados de uma recente sondagem (Aximage, 2023), segundo a qual 53% dos jovens portugueses admite instalar-se fora do país, enquanto 19% tem dúvidas quanto a essa questão. Por outras palavras, apenas um quarto dos jovens não equaciona de todo emigrar. Ainda há tempos cruzei com uma ex-aluna que me dizia estar de malas feitas para os Países Baixos. Verdade seja dita, somos useiros e vezeiros em lidar com tais paradoxos.

A instabilidade financeira e a crise da habitação vieram recentemente revigorar uma corrente migratória centenária qu’Eça de Queirós designava como “força civilizadora” (1874), mas Oliveira Martins já caraterizava como “sinal da nossa prostituição económica e política” (1891). Nem de propósito, os números do Banco de Portugal revelam que no primeiro semestre de 2023, a diáspora enviou para o país de origem quase 2 000 milhões de euros em remessas, ou seja, mais de 11 milhões por dia, números sobre os quais os nossos governantes não têm tanto por hábito comunicar. Os baixos salários e a subida do custo de vida em geral exacerbam uma crise endémica que nem a “pipa de massa” vinda da União Europeia consegue disfarçar. Em média, os nossos jovens apenas conseguem sair da casa dos pais por volta dos 30 anos. Para um país assim tão “competitivo”, dá que pensar.

Quando, em outubro de 2010, percorri pela primeira vez os corredores da Université Blaise Pascal (UBP) – entretanto rebatizada Clermont-Auvergne (UCA) – foi com uma satisfação não dissimulada que regressava à terra que me viu nascer. No entanto, só alguns anos mais tarde – em 2018 se a memória não me atraiçoa – vim a descobrir os laços que uniam a minha história familiar àquela instituição. No início dos anos 1970, já depois de ter calcorreado a França de lés-a-lés nos mais diversos ofícios, meu pai trabalhou alguns meses nos serviços de limpeza desta universidade pública, conseguindo assim “legalizar os papéis”, como então se dizia. Pouco tempo depois, acabaria por ser contratado pela fábrica Michelin – desse período já tenho memórias – onde permaneceu mais de uma década, enquanto minha mãe labutava nas limpezas de uma escola privada.

Esta quinta-feira, cheguei uma vez mais a Clermont-Ferrand para dar um seminário dedicado à análise dos media com alunos oriundos de países diversos. Desde que soube que, há meio século, meu pai percorreu estes mesmos corredores ainda com estatuto de trabalhador ilegal, não mais pude deixar de ter um olhar retrospetivo sobre os nossos percursos. Cada vez que entro no anfiteatro, lembro-me de onde venho. E cada vez que apago a luz ao sair, a quem o devo. E se algumas portas me estão hoje escancaradas, não é certamente em virtude das políticas públicas entretanto desenvolvidas em prol das chamadas comunidades portuguesas.

Manuel Antunes da Cunha

Manuel Antunes da Cunha

16 setembro 2023