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Portugal, o desenvolvimento e a nova demografia

“O governo não deve provocá-la nem proibi-la”, assim ajuíza o liberal Eça de Queirós sobre a emigração (opondo-se às vozes dos proprietários rurais que em Portugal reclamam a sua interdição), num relatório de 1874 apresentado em Lisboa ao ministro dos negócios estrangeiros, Andrade Corvo, após o seu regresso de Cuba. 

Em Havana, onde exercera as funções de cônsul português (dezembro 1873 a maio de 1874), Eça indignara-se pela situação de quase escravatura dos muitos trabalhadores chineses então imigrados naquela ilha – documentados por Portugal, para efeitos de legalização em Cuba, na sua passagem por Macau – e agora reportava ao ministro considerações várias sobre o processo, bem como sobre a emigração em geral, como se vê. 

A História dá muitas voltas, como o leitor sabe. Depois de muitos séculos (desde 1500) em que os portugueses e outros europeus partiam aos milhares para as então colónias das Américas, desde finais do século XX o fenómeno inverteu-se (tal como sucede hoje com África ou a Ásia).

Numa recente sondagem, publicada no diário JN, cerca de 50% dos jovens portugueses, admitia vir a emigrar, sobrelevando as costumeiras razões de ordem material para tal perspetiva.

Ao que parece, o mesmo sucede com muitos dos médicos portugueses, jovens sobretudo. Portugal despende avultadas verbas a formar médicos ou enfermeiros, mas uma parte significativa destes rejeita, entretanto, as condições de trabalho, remuneratórias particularmente, que o setor público oferece, preferindo hospitais privados ou emigrando para outros países. Já aqui abordei o assunto neste espaço, todavia, atenta a reincidente premência do mesmo, cá vai uma nova reflexão.

O Estado poupadinho e de contas certas revela-se um trunfo na cotação (benévola) dos juros para a emissão recorrente de dívida pública portuguesa, mas não sem que ameace de tendencial estiolamento o designado “estado social”. Nos setores da educação, da justiça, da saúde, das forças armadas ou de segurança o Estado começa a acusar incapacidade de atrair os melhores ou, tão-só, o necessário número de candidatos. Perante tal perspetiva, acabam por sofrer os portugueses no seu conjunto.

E assim voltamos a Cuba ou à América Latina. Todos o sabem, faltam médicos no SNS, particularmente “médicos de família”, nas regiões da Grande Lisboa, do Algarve e até do Alentejo. Perspetiva-se agora uma solução de remedeio, com o recurso a algumas centenas de médicos cubanos e de outros países latino-americanos. Pelo meio, podemos reter alguma estupefação pelo facto de o Estado português afetar expressivas verbas na formação de muitos médicos nacionais, que em boa parte acabam “oferecidos” a sistemas de saúde de outros países desenvolvidos, quando recebemos outros médicos estrangeiros, com formação porventura menos fiável, e que, tal como os clínicos portugueses que emigram, precisam de alguma adaptação ao nível da língua nacional.

Sabemo-lo. De há uns anos a esta parte, Portugal transmutou-se de um país de emigrantes num país de emigrantes e imigrantes. O princípio da livre circulação de pessoas estabelecido na UE ajuda a explicar a mudança, mas não em pleno. Consultando a PORDATA, retemos que em 2022 cerca de 72.000 portugueses “saíram para viver no estrangeiro, por mais ou menos de um ano”, enquanto no mesmo período cerca de 118.000 estrangeiros imigraram para Portugal de forma permanente. 

A nossa debilidade: a economia nacional tem crescido, em anos recentes, muito à custa de setores de mão de obra intensiva (agricultura, turismo,…), e de baixas remunerações, o que esmaga a produtividade.

Numa visão descomplexada, podemos acertar que a recente mutação resulta da natural livre escolha dos nativos portugueses, que procuram uma vida melhor no estrangeiro (Europa, maioritariamente), quanto da vontade de muitos estrangeiros que, a despeito dos baixos salários cá praticados, veem no nosso país, que deles carecerá, uma oportunidade para uma vida melhor. 

Importa ser otimista. Sejamo-lo, pois, mas sem inocência. Evidencia-se, lamentavelmente, que um pequeno país que vê emigrar tantos nacionais anualmente, como Portugal, exibe ares de quem descrê ainda muito acerca do futuro.

* Doutorado em História Contemporânea pela Universidade de Coimbra

 

Amadeu J. C. Sousa

Amadeu J. C. Sousa

28 julho 2023